Um crime invisível nas relações conjugais legitimado pelo costume
A violência de gênero no lar através do estupro marital é um tema pouco abordado na sociedade, mas que vem ganhando cada vez mais atenção por representantes de diversas áreas, incluindo a Criminologia.
O termo “estupro marital” refere-se aos casos em que a violência sexual é cometida por um dos cônjuges contra o outro, sem o seu consentimento.
Estudos indicam que essa forma de violência sexual é bastante comum em diferentes culturas ao redor do mundo, mas ainda é um tema que gera muitas controvérsias e tabus.
O Brasil, como muitos outros países em todo o mundo, tem uma história de legislações que institucionalizam a submissão feminina às ordens do homem, incluindo a obrigação do sexo no casamento.
Até a entrada em vigor do Código Civil de 2002, o sexo no casamento era considerado dever conjugal pelo Código Civil de 1916.
Esse código ditava que o casamento era baseado em mútua assistência e deveria, portanto, fornecer a continuidade do casamento e a proteção da família. O sexo era visto como a ferramenta principal para a manutenção da harmonia e continuidade desse casamento.
Por isso, se uma das partes não cumpria com essa obrigação conjugal, era possível pedir a separação judicial com anulação do casamento.
O projeto de lei que previa o fim da exigência legal do dever conjugal para com o sexo no casamento foi proposto em 2001 e a partir de então, foi criada uma discussão sobre a liberdade sexual dentro dos casamentos.
Com o surgimento desse projeto de lei, se pretendia pôr fim a uma prática que ele julgava anacrônica, considerando que a obrigatoriedade do sexo no casamento tinha origem em um sistema que tratava as mulheres como meras propriedades.
Com a Constituição de 1988, houve um grande avanço na conquista dos direitos humanos individuais, diminuindo a importância de obrigações que envolviam a vida sexual em detrimento da autonomia individual.
No entanto, mesmo com o fim da obrigatoriedade sexual no casamento, a realidade de muitas mulheres indica que as tradições e práticas culturais construídas durante séculos ainda persistem no imaginário social, o que faz o assunto ainda ser objeto de relevância científica, e deveria também ter a mesma relevância em âmbitos educacional e social.
A atual legislação brasileira já se desprendeu de um entendimento equivocado quanto a obrigação do sexo entre cônjuges, fazendo assim que questões como o consentimento mútuo seja considerado legítimo sob o ponto de vista legal.
A tipificação do estupro marital é um estupro que não se encontra expressamente previsto no Código Penal Brasileiro.
Mas, o ato de obrigar alguém a ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso mediante violência ou grave ameaça, ainda que entre cônjuges, é sim considerado estupro, conforme previsão do artigo 213 do Código Penal.
Lembrando que O crime de estupro é considerado um dos mais graves tipos de violência sexual, sendo passível de pena de reclusão de 6 a 10 anos, aumentada em até 2/3 em caso de lesão corporal grave, resultando em invalidez permanente da vítima ou morte.
Caso o estupro seja praticado por duas ou mais pessoas, além da pena por este crime, pode haver o acréscimo de pena por concurso de pessoas. Em casos de estupro de vulnerável por exemplo, ou seja, quando a vítima é menor de 14 anos, pessoa com deficiência mental ou enfermidade grave, a pena pode ser mais severa e agravada.
Portanto, independentemente do vínculo matrimonial, qualquer ato sexual não consensual é considerado estupro e poderá sim ser enquadrado no referido artigo do código penal.
Como resultado da idiotização social, inúmeras religiões e culturas de maneira irresponsável, ainda pregam a submissão feminina e a inferioridade em relação aos homens. A submissão é vista como uma virtude, uma característica que define a mulher como ser inferior e, portanto, incapaz de tomar decisões importantes. Este pensamento, interpretado de forma equivocada, pode levar à violência sexual em relações conjugais.
Isso torna a vítima ainda mais vulnerável à violência sexual, uma vez que acredita que não tem o direito de dizer não ao parceiro. A sociedade ainda reforça a ideia de que a mulher deve estar sempre à disposição do homem e a negativa ao sexo é vista como uma afronta.
Enquanto isso, outros dogmas religiosos condenam abertamente o sexo antes do casamento e as relações sexuais extraconjugais, criando um ambiente onde a questão do consentimento muitas vezes é deixada de lado.
A consequência é inevitável, muitas mulheres não conseguem entender que foram vítimas de estupro dentro do casamento e claro, se calam.
Na visão da Criminologia, o estupro marital é considerado uma forma de violência de gênero, já que ocorre em um contexto de relação hierárquica, em que o agressor se aproveita do poder que tem sobre a vítima para praticar o delito.
Trata-se, portanto, de uma questão que deve ser abordada não apenas no âmbito judicial, mas também no contexto social e cultural, para combater as raízes da violência de gênero e sua permissibilidade social como a erva daninha das relações saudáveis.
Apesar do respaldo jurídico da legislação, muitos casos de estupro marital ainda não chegam a ser denunciados ou punidos. Isso se deve a uma série de fatores, como o medo, a vergonha, a dependência econômica, a falta de confiança nas instituições e a descabida crença social de que a violência sexual dentro do casamento é condizente com a cultura.
É papel da Criminologia, portanto, orientar toda a sociedade na busca efetiva de mecanismos de enfrentamento ao estupro marital, trabalhando para a conscientização da gravidade do problema e as consequências do abuso sexual no âmbito conjugal.
Para tanto, faz-se cada vez mais necessário criar canais de denúncia e assistência para as vítimas fortalecendo a proteção legal e a articulação de políticas públicas de qualidade que visem a promoção de direitos e a educação para a igualdade de gênero.
O estudo ético da Criminologia é fundamental para lidar com o tema em questão, pois trata-se de uma contribuição inestimável para progredir no sentido de uma sociedade mais justa.
Nesse enfoque, a psicologia jurídica quanto ciência forense, visa compreender o comportamento e as motivações dos indivíduos em situações de justiça criminal, e, portanto, oferece uma visão esclarecedora sobre a forma como homens e mulheres enxergam o sexo.
Embora a prática sexual seja um aspecto universal da experiência humana e compartilhada por ambos os gêneros, há diferenças significativas na forma como homens e mulheres se relacionam com o sexo.
Na visão da Psicologia Forense, o sexo é visto como uma resposta biológica complexa que envolve aspectos cognitivos, emocionais e sociais. No entanto, há importantes diferenças na forma como homens e mulheres lidam com esses aspectos.
Um dos principais diferenciais é que os homens têm uma maior tendência a buscar a atividade sexual, devido aos níveis hormonais elevados de testosterona e à maior facilidade em sentir excitação e ereção.
As mulheres, por sua vez, têm uma maior tendência a considerar a possibilidade de um relacionamento romântico, devido aos níveis mais elevados de estrogênio e à maior necessidade de segurança e proteção emocional.
Essa diferença na abordagem ao sexo tem sido uma fonte de tensão e conflito entre os gêneros, e em alguns casos, representa a causa da violência sexual.
Além disso, é importante considerar que, enquanto para as mulheres, um aspecto fundamental da sexualidade é a conexão emocional e vulnerabilidade, para os homens a conexão emocional ocorre frequentemente ao fim do ato sexual.
Muitas mulheres sentem-se vulneráveis quando se entregam sexualmente a um homem, e a falta de conexão emocional adequada pode gerar em alguns indivíduos consequências cruéis como a sede de vingança.
A necessidade de vingança é um sentimento que pode surgir nas pessoas que foram vítimas de violência sexual, e surge da necessidade de recuperar a sensação de poder e de controle sobre suas próprias vidas, tendo em vista que o estupro é um ato de violência que retira a autonomia e a dignidade humana da vítima.
A necessidade de vingança surge no sentido de reparar essa violação de direitos e desejos que indivíduos com personalidade delitiva podem pensar como forma de justiça pessoal.
Assim, a Psicologia Forense e a Criminologia reforçam a importância da educação sexual para romper com as crenças e valores que levam à violência sexual no casamento, proporcionando conscientização e respeito à individualidade dos desejos e das vontades de cada um.
Essa é uma questão relevante não apenas para a vida de um indivíduo, mas para a sociedade como um todo, fomentando a cultura do respeito e igualdade entre os gêneros.