Bruxas de Salém

Bruxas de Salém: Um Julgamento pragmático

Criminalização do Saber e a Construção Social do Desvio

Bruxas de Salém – Um julgamento que constitui um marco paradigmático na história do poder punitivo e da criminologia social.

Julgamento, aqui, não é apenas o ato jurídico de condenação, mas o símbolo da legitimação social do medo e da necessidade coletiva de encontrar um inimigo palpável.

Em 1692, na pequena vila puritana de Salém, Massachusetts, EUA, instaurou-se um processo de histeria que transcendeu o campo religioso, transformando-se em um fenômeno sociocriminal de larga escala.

O Julgamento das Bruxas de Salém tornou-se o retrato mais evidente de como o poder, o fanatismo e a ignorância se combinam para construir uma forma de punição legitimada pelo consenso moral e pelo terror.

Sob a ótica da criminologia crítica, Salém representa o nascimento simbólico do controle social institucionalizado. Antes mesmo do Direito Penal moderno, a sociedade puritana já estabelecia um sistema de exclusão e estigmatização.

A bruxa não era punida pelo crime que cometia, mas pelo que representava: autonomia, conhecimento e diferença. Como apontaria séculos depois Foucault, “o poder punitivo antecede a norma”, e em Salém, o castigo antecedia a culpa.

A histeria coletiva que emergiu em Salém não pode ser reduzida a um simples delírio religioso. Ela foi, na realidade, a expressão de um mecanismo social mais profundo: a produção sistemática do medo como ferramenta de coesão comunitária.

Quando o corpo social se sente ameaçado por guerras, doenças, crises políticas, surge a necessidade de canalizar a angústia em um inimigo visível. Assim, nasce o processo de criminalização simbólica: a identificação de um “outro” cuja eliminação restaura a ordem.

O Julgamento das Bruxas de Salém ilustra com precisão o conceito de “pânico moral” desenvolvido por Stanley Cohen (1972), segundo o qual grupos sociais são rotulados como ameaças à moral coletiva e perseguidos com intensidade desproporcional.

A bruxa, nesse contexto, é o protótipo do “folk devil” , ou em outras lavras, “o demônio popular”, fabricado pela autoridade moral para justificar o poder punitivo.

Cada grito das meninas em transe, cada “prova espectral” apresentada em tribunal, representava menos uma manifestação espiritual e mais uma validação pública da repressão institucional. A histeria converteu-se em um dispositivo de controle social, no qual a emoção substituía a evidência e a crença legitimava o castigo.

O Julgamento como Ritual Punitivo e a Origem da Criminologia Moral

O Julgamento das Bruxas de Salém não se limitou ao campo da fé: foi um ritual político e simbólico de reafirmação do poder patriarcal e clerical. A teatralidade dos julgamentos, as confissões públicas, execuções ao ar livre, proclamações de arrependimento, transformava o castigo em espetáculo.

Esse modelo ritualístico antecipa o que Foucault denominaria, no século XX, de “poder disciplinar”, cuja função é produzir docilidade, não justiça.

O Julgamento de Salém, portanto, é o embrião da criminologia moral: uma forma de controle que pune não o crime, mas o desvio ético do comportamento esperado. As mulheres perseguidas eram, em sua maioria, pobres, idosas, estrangeiras ou dotadas de algum saber natural curandeiras, parteiras, conhecedoras de plantas. Seu conhecimento, por escapar ao domínio masculino da teologia e da medicina, era entendido como perigoso.

Assim, o Julgamento das Bruxas de Salém reflete a criminalização do saber feminino, um processo que transforma o conhecimento em transgressão e o pensamento em ameaça.

A figura da bruxa, ao longo da história, foi marcada por uma associação direta entre saber e culpa. Na criminologia clássica, Lombroso (1893) descreveu a mulher criminosa como biologicamente anômala, incapaz de moralidade plena.

Em Salém, três séculos antes, essa ideia já estava em prática empírica: a mulher que sabia demais era perigosa por natureza.

O Julgamento das Bruxas de Salém tornou-se, portanto, o protótipo da perseguição epistêmica: punir quem questiona, quem pensa, quem rompe o silêncio.

O medo da autonomia feminina se disfarçou de zelo religioso, e o sistema punitivo, em sua forma primitiva, mascarou a repressão como justiça divina.

A bruxa não era inimiga de Deus era inimiga da ignorância.

E é justamente por isso que o Julgamento das Bruxas de Salém permanece como metáfora criminológica da incompatibilidade entre saber e submissão.

Sob o prisma sociológico, Salém foi o resultado da convergência entre conflitos econômicos, tensão política e estrutura de poder desigual.

A divisão entre a Vila de Salém (rural, conservadora) e a Cidade de Salém (comercial, liberal) criou o terreno perfeito para disputas de propriedade e influência.

As acusações de bruxaria seguiram linhas econômicas e territoriais: acusadores e acusadas pertenciam a grupos rivais.

O Julgamento das Bruxas de Salém, portanto, deve ser compreendido também como um instrumento de reorganização social, uma forma de eliminar adversários sob o manto da fé.

Ao criminalizar o feminino, o pobre e o estrangeiro, a comunidade puritana reafirmava seus pilares de poder. O medo foi o cimento da coesão social.

Durkheim já afirmava que o crime é necessário para a unidade do grupo, pois permite a reafirmação das normas. Em Salém, a bruxa cumpriu esse papel simbólico foi o sacrifício coletivo que manteve a ordem de um mundo em colapso moral.

A Morte como Linguagem: O Corpo Feminino e o Castigo

A execução pública em Salém foi mais do que punição: foi linguagem.

O corpo enforcado da mulher convertia-se em mensagem visível, um aviso às demais sobre os limites da liberdade.

O Julgamento das Bruxas de Salém transformou o corpo feminino em texto jurídico-moral, inscrito pela força do poder patriarcal.

A criminologia crítica contemporânea (Baratta, 1982) identifica nesse processo o nascimento do direito penal do inimigo, no qual o acusado é desumanizado e, portanto, excluído da proteção da lei.

O castigo coletivo, portanto, não servia à justiça, mas à pedagogia da obediência.

Em cada fogueira, em cada enforcamento, havia uma lição silenciosa: o saber é perigoso; o silêncio, seguro.

Mas o fogo que destruiu corpos acendeu consciências e foi dessa chama que nasceram os primeiros questionamentos sobre o poder, a culpa e a verdade.

Séculos depois, o Julgamento das Bruxas de Salém ressurge sob novas formas.

A fogueira se modernizou, o discurso se sofisticou, mas a estrutura permanece: mulheres continuam sendo rotuladas, patologizadas e deslegitimadas.

A criminologia de gênero demonstra que o sistema penal contemporâneo ainda pune condutas “impróprias” ao papel feminino esperado.

A mulher assertiva é tida como agressiva; a cientista, como arrogante; a criminóloga, como “questionadora demais”.

A nova bruxa é a mulher que fala e o julgamento continua, agora em tribunais de opinião, redes sociais e instituições.

O Julgamento das Bruxas de Salém é, assim, um espelho histórico da seletividade penal.

Ontem, o “espectro demoníaco”; hoje, o “perfil perigoso”.

O crime nunca foi o ato, mas a identidade atribuída.

O Julgamento das Bruxas de Salém permanece como o exemplo mais cruel daquilo que a criminologia moderna tenta decifrar: a relação entre poder, medo e punição.

Quando a sociedade elege inimigos simbólicos, legitima o controle total sobre eles.

O Julgamento das Bruxas de Salém mostra que a ignorância institucionalizada é mais letal do que qualquer feitiço.

A criminologia nasce desse mesmo solo: não do simples desejo de punir, mas da necessidade de compreender por que escolhemos determinados alvos para a punição, e como essa escolha se torna um instrumento de proteção social.

E talvez, em última análise, as verdadeiras bruxas tenham sido as primeiras criminólogas, mulheres que compreenderam, antes de todos, que o primeiro desvio não está no comportamento, mas no olhar de quem julga.

Concluo, portanto, que se pensar é crime, aceitemos a culpa com dignidade. Se conhecer é heresia, que sejamos consumidas pela chama da razão. O caso de Salém nos deixou uma lição eterna: o verdadeiro feitiço é o conhecimento, e o maior exorcismo, a verdade.

Nota explicativa: Julgamento Espectral

O termo julgamento espectral refere-se a um tipo de processo em que as acusações e as provas se baseiam na alegação de que o “espírito” ou a “aparência espectral” de uma pessoa teria aparecido para atormentar as vítimas.

Em Salém, acreditava-se que o corpo físico de uma bruxa poderia permanecer em repouso enquanto seu espírito, sob influência demoníaca agia à distância. Essa prática tornava impossível a defesa do acusado, pois a evidência era subjetiva e invisível, dependendo apenas do testemunho daqueles que afirmavam ver o espectro.

 


Escritora científica pelo ORCID (Open Researcher and Contributor ID)
Identificação Internacional, 0009-0001-2462-8682

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