A Violência Intrafamiliar, é uma das formas mais comuns de violência contra a mulher.
Este artigo, pretende refletir de à luz da fenomenologia, em especial, a existencial, algumas possíveis intervenções em Mulheres Vítimas de Violência.
No mês da mulher, ainda que sob ameaças do COVID-19, pretendemos em crítica ao uso da técnica, que minimiza o lugar da empatia, à luz de Heidegger, a partir de sua Obra Ser e Tempo, delinearemos nossa proposta de intervenção, como forma de olhar e agir, em diversas situações cotidianas de sofrimento, para além da esfera objetiva.
Neste espaço, faço uso da Análise Existencial, como método interventivo em situações de violência doméstica, ou intrafamiliar, experienciada por mais de um milhão de mulheres no Brasil, no intuito de atravessarmos essa realidade, na promoção de alívio em várias esferas onde estas se revelam.
Três eixos me sensibilizaram a tal reflexão: Minha experiência enquanto mulher, minha experiência enquanto profissional de saúde (incluindo mental) e o lugar do Diz-Ser.
Desta forma, penso justificar minha escolha em Heidegger e outros pensadores da fenomenologia e hermenêutica, para abordar tão tema.
Medidar Boss, amigo e parceiro de Heidegger, através dos Seminários Zöllikon, na década de 1950, contribuiu para que a idealização de seu mestre e amigo, ocupasse um lugar que pudesse então humanizar o tratamento de seus pacientes.
Essa humanização – proposta ao saber técnico do modelo biomédico da cura – permitiu de forma inédita, na época, a possibilidade de um olhar empático ao sujeito em sofrimento, permitindo-o um lugar de acesso à sua integralidade e sentido existencial.
Hoje sabemos que sem essa integralidade multidimensional não existe Saúde:
“Organização Mundial da Saúde (OMS) elaborou em 1947, que define saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”.
Em termos existenciais, nós somos a nossa história! Eu sou a minha história.
Por isso, quero narrar um pouquinho de minha experiência. Nessa jornada fática como mulher, mãe, amante, do lar, profissional, estudante, pesquisadora e militante.
Um pouquinho do meu existir
Me formei em Teologia em 2001. Com 23 anos, fui a primeira mulher consagrada ao pastorado no ministério a qual eu pertencia.
Neste lugar vivenciei: assédio moral, sexual, misoginia. Tudo isso em virtude de uma construção patriarcal predominante justificada como embasamento de fé.
Após anos de dedicação integral e renúncia pessoal, fui diagnosticada com alguns problemas de saúde, que sugeriram na época um tempo de afastamento para recuperação.
Pelo ministério, fui julgada como incapaz. Convidada a me retirar.
Pelos médicos, a falta de humanidade do saber técnico, me lançava no mais profundo abismo da invisibilidade. Isso sem contar os abusos e infâmias ocorridos.
E quando a depressão se instalou? Incapacitação geral foi meu diagnóstico.
Nesta ocasião, necessitando de cuidados maiores e com dois filhos pequenos, fui “abandonada pelo marido”. Mesmo doente, enfrentei a Escola de Enfermagem.
Como profissional encontrei barreiras políticas, mas também, leis capazes de solucionar a questão de muitos em sofrimento.
Algum tempo depois, percebi que na política, apesar de extrema importância, a mulher também tem seus limites. Nesses três lugares de supostos saberes passei a observar muitas mulheres em situações mais desesperadoras que a minha.
Pesquisei estratégias de enfrentamentos, promovi ações sociais que se estendiam a encontros de grupos, associações, Igrejas, missões intermundiais.
Nesse lugar de escuta e acolhimento descobri que muitas mulheres não compreendiam o que é um ser em sua integralidade, não apenas por questões socioculturais, mas por crenças disfuncionais.
No exterior, na luta por direito pelas mulheres abandonadas e condenadas a miséria por questões culturais e civis, fui convidada a estudar psicologia. A clínica me encantou, o comportamento humano foi meu operante.
Mas sem o olhar na dimensão jurídica enquanto mediadora de conflitos em um tribunal criminal, jamais poderia continuar essa reflexão. Foi na Justiça Restaurativa meu olhar se alargou para a reflexão do lugar da violada e do violador.
O insight ocorreu: por que não perceber sob uma perspectiva existencial?
A partir desse insight, que Heidegger denomina “consideração”, que tudo se renova e a proposta desse olhar se amplia. Nos Seminários Zöllikon, ele provoca seus alunos e ouvintes um despertar para além da Técnica (padrão, verificável, deferido, etc.).
Crítica ao saber técnico e a ação existencial humanista
Neste ser afetada e intenção em afetar, surge uma proposta para os agentes de saúde humana se voltarem para um olhar Transdisciplinar, para além do saber Biomédico.
Olhar frente a uma dimensão que permita a abertura do Ser-para- si, Ser-para- o-outro e do Se-para-o-mundo!
O modelo biomédico visa cuidar o humano enquanto objeto. A subjetividade não é suportada no campo da técnica.
Ainda que se compreenda a mesma, trata-se dos sintomas e não do ser. Inspirado em Lacan, Heidegger provoca Boss, alegando que o Dito é fala. Fala não é linguagem! Para Heidegger, Communicatio é possibilidade de Ser.
Communicatio em sua etimologia é “mostrar”. Mostrar a coisa não é tão fácil! Na Metafísica II, Aristóteles diz:
“Assim como os olhos dos pássaros noturnos se relacionam com o brilho e a luz do dia, também é a percepção do nous que relaciona com aquilo que é mais evidente antes de tudo!”
Isto é ser! Estar em evidência, foi a proposta do filósofo. Ao propor a metafísica aristotélica aos seus alunos, Heidegger se preocupou em dizer: Aristóteles não está acabado!
Nossa crítica ao saber técnico fundamentada em Heidegger pretende talhar esse olhar de forma alargada sustentada pela possibilidade de consideração pelo outro.
A mulher vítima de violência doméstica está enclausurada numa espécie de abismo do ser.
Foi na clínica ampliada (proposta transdisciplinar) que aprendi que a violência intrafamiliar é uma forma de violência a qual muitas mulheres estão submetidas, tendo origem entre os membros da família, independente se o agressor resida no próprio domicílio.
Os agressores incluem:
- Violação de Direitos: “Lugar de mulher é pilotando fogão”… “Seu filho tá perdido porque você vive trabalhando”, “mulher boa é mulher calada!” (discurso abusivo)
- Maus tratos físicos: pode incluir palavras ofensivas diretas – Comportamento verbal.
- Psicológicas: Desequilíbrio emocional, propensão maior a quadros depressivos graves e câncer de mama e útero.
- Econômica: Pesquisas mostram que mulheres independentes financeiramente sofrem menos violência que as mulheres dependentes de maridos.
- Outros abusos: somatização psicológica-social e física.
O que fazer enquanto profissionais de saúde ou promotores de saúde?
Frente a tanta complexidade, o profissional de saúde não pode ser omisso. O saber técnico normaliza e objetifica a “coisa” familiar, com justificativas clichês:
“Em briga de marido e mulher não […]”
Essa nulidade de subjetividade, fomenta uma possibilidade paradoxal: a abertura para um processo de alteridade em relação a este outro ofendido ou machucado.
A omissão de atendimento necessários, e mesmo de uma escuta empática, sem juízo de valores, agrava os fatores de risco, pois além de promover a impunidade do violador, não vem de encontro à necessidade real dessa mulher acuada, amedrontada, envergonhada.
Ao ser atendida pelo profissional, não é o corpo todo modo de operação e cuidado. A dor da alma muitas vezes, quando não acolhida e intervida, mesmo que minimizada através de uma ação medicamentosa, não é suficiente para compreende-la e aliviá-la em sua integralidade.
A consideração proposta por Heidegger tem espaço aqui, não como mera atitude com a coisa objetiva, mais um olhar para além disso.
Um olhar ao sujeito que necessita de um espaço sem julgamento com ampliação à uma escuta humanizada.
Quais caminhos a seguir frente a um atendimento com mulheres vítimas de violência intrafamiliar?
- O primeiro passo é se apropriar das políticas públicas. A Lei 11.340, não beneficia só Maria. É preciso prover o ônus da prova, para isso a escuta empática e visão de justiça restaurativa são imprescindíveis;
- Onde Denunciar? Ligue: 100 – 180 – 190. Lembrando que a Polícia Militar só atua em flagrante. Procure as Delegacias especializada em Atendimento à Mulher -. DEANs. Todos esses órgãos garante o anonimato do denunciante e funcionam 24 horas, todos os dias;
- Centros de Enfrentamento de Violência à Mulher. Todas as Capitais da Federação contam com esse serviço de acolhida, enfrentamento e intervenção em prol à mulher e seus familiares;
- Saúde Mental – Num país de escassez profiláxica em relação a saúde mental, ainda temos o desafio de humanizar o setor. Contudo, o desgaste de uma relação marcada pelo abuso e violação de direitos, afeta diretamente a mente. Procure os hospitais de CAPS locais.
É preciso ressignificar a relação. Muitas vezes, a ação tem que ser coletiva. Uma relação aberta para o mundo significa suportar o presente sem fugir para o futuro nem passado.
Para isso, ter consideração é se importar com a mulher violada, não como meio para justificar os fins, como a justiça costuma punitiva costuma agir:
“O mais triste é estarmos entregues à técnica quando consideramos como algo neutro; pois essa representação, à qual hoje em dia especialmente seadora prestar homenagem, nos torna completamente cegos perante a essência da técnica”. (HEIDEGGER, 1997a).
Enquanto profissional de saúde, abro espaço, não apenas para uma escuta empática. Mas, para que a mulher em situação de violação de direitos, possa, além de ser acolhida, ser amparada, reeducada, ressignificada, e considerada, mulher em si.
Poder ser o que desejarem ser!
Para isso trabalho a corporalidade com a bioenergética. Nesse espaço elas cantam, dançam, gritam, ser-e-velam. Desocultam o ser, encontram a clareira: a verdade do ser.
Outra técnica é a Daseinanályse. Esta lhes permite um lugar de escuta, desse ser-revelado, valorizado em sua encarnação.
Do dizer (a verdade desocultada), eu provoco: Diz-Ser! E nesse discurso desse vir-a-ser que Diz-Ser, o Dasein (aí ser) se revela. É nesse aí-ser, que o olhar se encontra; o calor aquece; o vazio, é o livre ocupado.
Não há vazio sem livre. O vazio é fundamental no livre. Esvazio a culpa, tensão, a vergonha e a dor, para ela ser e ter o que quiser!
Finalmente, compreendemos que é nessa relação com o outro que a gente se desfaz e se refaz. Desconstrói e reconstrói. Nessa caminhada existencial reconstruímos a estrutura psicológica e restauramos a saúde mental.
O social é preservado, desocultado pela consideração de um espaço de liberdade do ser, o que a técnica jamais promoverá. Cuidado é fenômeno ontológico básico, i.e, possibilidade de existência Humana. Desta forma:
“Esquecer a mais importante característica de nossa existência tem custado ao homem um alto preço, o preço de um mundo dominado pela atitude tecnológica”.
Leonardo Boff, teólogo existencial, soma a mim, justificando o discurso de Heidegger, quando diz:
“Conceder direito de cidadania a nossa capacidade de sentir o outro, de ter compaixão com todos os seres humanos, de obedecer a mais, a lógica do coração, do que a lógica da conquista do uso utilitário das coisas”.
Pensar mulher é considerá-la para além do véu da obscuridade do ser. A clareira que se abre, revela estatísticas tristes e assustadoras.
Feminicídio é real! Mas, na conscientização dessa realidade e disposição na promoção da Integralidade do ser, alcançaremos alternativas em rumo a esta liberdade, e por que não Humanidade?
Violência, em todas as suas esferas potencializa o sofrimento e ausência de direitos humanos.
Em rumo à existência, lutamos pela essência da liberdade do SER.