Quero sair…
Quero passear, praia, shopping, campo, montanhas.
Quero viajar, voar, sair para a noite, balada, festas.
Quero sair às compras, quero encontrar alguém para partilhar momentos.
Quero conhecer outras terras, outros costumes, outras línguas.
Mas estou presa dentro de mim, quero…. Mas, não vou, não saio, tenho medo.
A insegurança, por vezes, atormenta a alma, não move o corpo, perde a força de ir e vir.
Celina tinha já seus 45 anos, vividos para filho e marido.
Marido rígido, sisudo, não a deixava trabalhar fora.
Após o casamento, tirou-a do trabalho para cuidar de casa. Disse que teria muitos afazeres, não teria tempo para trabalhar para os outros.
A casa onde trabalhava tinha adolescentes, crianças, patroa exigente.
- Mulher minha não recebe ordens de estranho. Ele dizia.
No começo ela achou bom, ia tirar um descanso do trabalho estafante e rotineiro, pensou aliviada.
Foi na casa da patroa e explicou que, o marido não a queria trabalhando fora.
A patroa sentiu muito, pois sem os prestimosos cuidados de Celina, ela não saberia de onde começar, as crianças não eram organizadas, os adolescentes não a obedeciam.
Ficava mais fora do que em casa, não dando ajuda nos afazeres, o que fazer enquanto eu trabalho? Pensou a patroa triste.
Porém, entendeu a posição de Celina. Casada recentemente, é certo que o marido a queira perto dele por um tempo, depois ela volta, pensou, logo cansam.
Celina também pensou assim, porém, logo veio o Lucas, cheio de vigor, chorava muito, trazendo preocupação para a mãe que não conseguia sequer pensar em colocá-lo numa creche para poder retornar ao trabalho. Isso daria um rendimento extra para ela, mesmo que fosse por meio período. Cogitou o assunto e trouxe a ira do marido, Douglas, severo e ciumento não deixou que Celina terminasse o que havia em mente, proibindo esse pensamento.
- Já não disse que mulher minha não trabalha fora? Não vê que nosso filho exige todos os seus cuidados? Trate de ajeitar a nossa casa e educar nosso filho direitinho. Eu já tenho muitas preocupações lá fora, não preciso ter mais uma, com você fora de casa.
Saiu para a rua resmungando, nervoso, nem disse para onde ia. Resignada, Celina deixou que sua vida fosse dirigida pelo marido.
Passaram-se o tempo, Lucas já adolescente, fazia curso de violão, enquanto estudava para vestibular, não permanecendo na casa durante o dia, à noite saia com os amigos.
Celina foi ficando, sozinha e para preencher o tempo, deixava a casa um brinco, não tinha uma poeira para contar história. Ela já não pensava, todos os serviços ela fazia mecanicamente. À tarde, a casa que já era limpa, nada tinha mais que fazer, sentava no sofá, ligava TV e ali ficava.
Não assistia ao programa, porém tinha que fazer barulho, ela estava ficando solitária, não conseguia suportar o silêncio.
Quando o Douglas retornava do trabalho, ia direto ao banho, quando Celina colocava a mesa para o jantar, a tempo de ele sair vestido num pijama, pegar seu prato de comida e ir comer no escritório, enquanto assistia telejornal.
De lá, ia direto ao banheiro para a higiene e seguir ao quarto. Mal falava com sua esposa.
Ela era uma doméstica na sua própria casa. Quando ouvia barulho de porta fechando no quarto, ela seguia para o escritório pegar o prato sujo para lavar e deixar escorrendo até secar.
Não podia secar com o pano porque Douglas reclamava que detestava encontrar fiapo de pano no prato que comia.
Lucas por vezes, ligava avisando que voltaria tarde, que não jantaria. Outras vezes, ligava dizendo que dormiria na casa de colega, pois tinha trabalho de escola para terminar.
Celina foi ficando cada dia mais solitária, sem amigos, sem vizinha para fofocar, sem filho e nem marido. Ela havia parado de reclamar, não adiantaria, ninguém dava crédito ao que ela falava.
Douglas fazia compras, não a levava para passear, não a deixava passear sozinha, nem o filho a queria por perto.
Passaram-se o tempo, quando um dia ela recebeu telefonema fora de hora. Achando estranho, atendeu e recebeu notícia de que seu marido estava hospitalizado, havia sido atropelado. Ela, não sabia o que fazer, se ia ou esperava seu marido autorizar a ida.
Lucas, seu filho chegou em casa e estranhou a mãe, sentada, apática, TV desligada.
- Mãe, o que foi?
- Seu pai… Ele foi atropelado, está no hospital, mas não sei se devo ir, ele me mataria se saísse de casa, sem ele mandar.
- Mãe, se ele foi atropelado, ele precisa de você lá, ele precisa de nós. Vamos?
Assim, eles foram para o hospital no carro do amigo de Lucas, que solícito, ofereceu para nos levar.
Chegando lá, o médico logo nos chamou para um canto, contando que a lesão foi grave, que ele já havia sido operado, mas está desacordado. Teria que esperar um dia para saber se ele reagiria bem à cirurgia.
Celina, caiu sentada na cadeira de madeira do hospital, não sabia se chorava ou ria, trazendo preocupação para o médico e para o seu filho Lucas, sentiu de repente, um alívio tão grande, como que liberta da amarra que sentia, mesmo invisível, seu marido havia colocado uma corrente em volta dela, para ela não sair para lugar nenhum.
Passados duas semanas, seu marido se recuperou do acidente retornando para casa, porém na cadeira de rodas, a cirurgia havia sido um sucesso, mas deixou sequela. Sua coluna vertebral não se afirmava.
- Seu marido sofreu trauma pós-operatório, não tem nenhuma lesão, é psicológico, cedo ou tarde ele retorna ao normal, ele vai voltar a andar. Disse o médico, ao liberá-lo, dando alta hospitalar.
Celina desolada, não sabia o que fazer, porque seu marido voltou um carrasco. Tudo ele reclamava, gritava, dizia que ela não dava atenção devida e não o valorizava. Dizia que ele trabalhou como camelo para dar-lhe conforto, e ela não retribuía como devia.
Ela se esmerava, pois agora tinha que cuidar da casa, e de seu marido 24 horas por dia, a exigência dele estava cada vez pior.
Quando ele dormia, era o momento que ela descansava, pois que ele não tinha hora certa, por vezes, dormindo durante o dia, após almoço, acordava a noite, na madrugada, a qualquer hora, já gritando, tirando todos do sono precioso.
Celina estava ficando estressada, à beira de uma depressão. Queria fugir para bem longe, então começou a alimentar a ideia de que Douglas devia ter morrido no acidente, seria bem melhor para todos. Esse pensamento não saia dela, mas ela não podia externar.
Enquanto ele estava hospitalizado, eles receberam visitas de colegas do trabalho dele, porém quando teve alta, ele proibiu Celina abrir a porta para quem quer que fosse, não queria visita de ninguém.
Disse que não confiava nas visitas, principalmente masculina, agora que ele estava aleijado, ele não cansava de repetir isso, deixando-a triste, pois mesmo ele são, ela já não se sentia esposa, ele a rejeitava, porque agora ele vem com essa ideia?
Chorava pelos cantos, pensando o que ela teria feito para ser tão infeliz assim.
Lucas, não aguentava seu pai, tão ranzinza e maus tratos com sua mãe, saia com alegação de que se ficasse não respondia pelos seus atos.
Celina, continuou a sua vida, solitária, sofrida, triste e presa dentro de tantas vontades, sem possibilidade. Não sonhava mais, pois antes, ela sonhava navegando na internet, admirando paisagens de praias, montanhas, festas, enfim, ainda podia pensar que tudo isso mudaria e ela seria feliz, no final.
Agora, com seu marido em casa, não tinha mais tempo para nada, e quando ele dormia, ela estava tão cansada que não buscava mais, não achava mais graça em nada.
Ela não sabia se era melhor ele fora trabalhando e retornando somente à noite para dormir, ou ele em tempo integral, não dando a ela tempo nem para respirar direito.
Douglas faleceu, depois de quase seis meses em casa, na cadeira de rodas ou na cama, dando trabalho até para comer ou na hora de higiene pessoal.
Enfartou numa madrugada, lá fora chovia a cântaro, dentro estava muito frio, ele não gostava de cobertor, mas naquela noite eu o cobri. Preocupei-me por notar que ele estava febril, deitei-me no sofá perto da cama, e cochilei.
Por volta de 03h da manhã, ele se agitou na cama, derrubou o cobertor e eu acordei assustada, ele estava sentado, o que não fazia há tempo, então ele estendeu os braços para mim, e fui até ele, estava encharcado de suor, disse para ele que iria buscar uma camisa seca e uma toalha úmida para aliviar da febre e ele recusou.
Segurou as minhas mãos e pela primeira vez, olhou-me nos olhos, súplice, humilde:
- Perdoa-me Celina, disse ele, eu não sabia a esposa preciosa que eu tinha em casa.
- Não se canse, disse Celina.
- Deixe-me falar, eu preciso, fique aqui. Pediu.
Então Celina sentou-se à beira da cama e o amparou para que ele se deitasse, como não queria se trocar, coloquei um lençol seco no colchão, para não ficar tão incômodo, ele na verdade, nem se incomodou com o estado, antes tão exigente, estava até receptivo.
Fechou os olhos e começou a falar:
- Logo que nos casamos, insisti em que passássemos a nossa lua de mel na praia, lembra?
Ela calada, lembrou-se do dia de seu casamento, quando ele disse taxativo que seria na praia, que descartasse a ideia de ir a Poços de Caldas, onde sonhavam ir, enquanto noivos.
Assentiu com a cabeça, calada e pensativa. Não conseguia imaginar a causa de sua mudança repentina, mas não quis contrariar Douglas, no primeiro dia do casamento.
- Nesse dia eu recebia notícia de uma garota com quem havia saído uma noite, após o trabalho, estávamos comemorando o fechamento da empresa, o faturamento havia superado a expectativa. A garota se chamava Marcia, ela foi com um minivestido, trazendo admiração de todos os colegas, que a achava linda.
- O vestido vermelho, com rendas no decote, trazia à Márcia, uma beleza luxuriante e eu havia decidido que ela seria minha antes de todos, afinal eu havia batido a meta da empresa.
- Após uma bebida e outra, sem costume, fiquei tão embriagado que não sabia o que estava fazendo, mas os colegas concordaram, dizendo que seria como uma despedida de solteiro.
- Isso não foi nada bom, ela começou a me assediar, e no dia de nosso casamento, ela disse que iria à praia e me queria lá, senão ela iria ao casamento e contaria a você diante do altar o que havíamos feito, semanas atrás.
- Fiquei transtornado, eu morria de medo de escândalo, não tinha coragem de te contar, então quase a forcei a mudança de viagem de lua de mel, e na noite após nossa primeira noite, tive que sair para satisfazer ao prazer de Márcia que cada dia estava mais exigente.
- Eu já não aguentava mais, tinha medo que você descobrisse, tirei você do trabalho e nunca mais deixei você pisar fora de casa, de medo de um encontro casual entre você e Márcia.
- No hospital, ela foi, enquanto você saia para buscar roupas limpas e lavar as sujas, era o momento em que ela ia para me usar, eu podia andar, mas tive que disfarçar até hoje, de medo de encontrar com ela.
- Sinto muito de ter te tratado tão mal, estava fora de mim. Sentia-me péssimo, acredite.
Douglas contava aos prantos. Celina não sabia o que fazer e nem dizer. Calada, só ouvia.
Não chorava, não se lamentou, achou lá no fundo, bem feito para ele. Já não o amava. Se ele contasse, talvez desse divórcio para que ele vivesse com essa tal Márcia.
Agora, pensou ela, nada mais importa.
Douglas, não sentindo a reação que esperava dela, levantou os olhos e viu indiferença. Nesse momento, sentiu um choque tão grande, de como havia magoado sua esposa que pacientemente acompanhou seu exílio, cuidou calada, sofreu sozinha.
Nesse momento, ele sentiu um aperto tão forte no peito, não conseguindo respirar direito, agarrou o lençol, se contorceu, e ao tentar levantar, caiu de lado, dando pela primeira vez, uma aflição sem tamanho na Celina que correu para buscar o telefone e ligar para o resgate para buscá-lo.
Foi a conta de chegar no hospital, já por volta das 05h da manhã, o médico foi acionado, chegando quase junto da ambulância, prestou os socorros necessários, mas era tarde demais, ele havia falecido, enquanto recebia medicamento.
Creio que o fato de ter confessado seu pecado para a pessoa amada, deixou-o tão aliviado, e ao mesmo tempo angustiado por perceber o sofrimento causado, que a pressão subiu.
Foi a explicação do médico, após confissão de Celina. Agora, viúva, solitária, sem amigos, não impediu que seu filho viajasse para estudar fora da cidade, ele teria que seguir seu caminho.
Permaneceu na casa, fazendo as mesmas coisas, sem necessidade de trabalhar para o seu sustento, pois a pensão deixada pelo Douglas era suficiente para viver.
Ela ficou com sequela, de seu casamento, não consegue sair para aproveitar a vida. Todas as necessidades de compra ela faz por telefone, como fazia quando Douglas estava doente.
Sem coragem, se sente prisioneira de seu próprio desânimo, não conseguindo tirar seu corpo para passear, viajar, buscar alegria ou paisagens com os quais tanto sonhava.
Nenhum amigo a procurava, não tinha mais, desde que se casara. Seu marido não permitia pessoas “estranhas” em casa.
Hoje, presa dentro de seu próprio corpo, não reage.