Síndrome de Diógenes

Síndrome de Diógenes: acúmulo revela algo além da desordem

Transtorno complexo que envolve disfunções cognitivas, emocionais e funcionais

Síndrome de Diógenes: quando o acúmulo revela mais do que desorganização no comportamento humano, indicando rupturas neuropsíquicas.

A condição se manifesta por negligência extrema com autocuidado, isolamento social, resistência à ajuda e acúmulo de objetos sem valor prático, muitas vezes em condições insalubres.

A literatura descreve a Síndrome de Diógenes como um fenômeno multidimensional que não constitui, isoladamente, uma entidade diagnóstica nos manuais psiquiátricos, mas sim um conjunto de comportamentos e sintomas que podem surgir secundariamente a outros transtornos mentais.

Os casos são frequentemente associados a transtornos do espectro obsessivo-compulsivo, demência frontotemporal, transtornos psicóticos e de personalidade.

Do ponto de vista neuropsicológico, estudos com neuroimagem funcional demonstram hipofunção no córtex pré-frontal ventromedial, comprometendo o julgamento, o descarte de informações irrelevantes e a tomada de decisões.

Alterações no giro do cíngulo anterior prejudicam o monitoramento de erros e a resolução de conflitos cognitivos.

A amígdala cerebral, implicada no processamento emocional, também pode apresentar disfunções, interferindo na atribuição de valor afetivo a objetos.

Esses fatores, somados, contribuem para o fenômeno de atribuir significado emocional disfuncional a materiais inservíveis, tornando o descarte angustiante ou até inaceitável para o sujeito.

A síndrome está associada a prejuízos nas funções executivas, especialmente em planejamento, categorização, memória de trabalho e organização ambiental. Esses déficits comprometem o manejo da rotina e tornam o ambiente um reflexo direto da desorganização cognitiva.

Em termos funcionais, os efeitos são severos. Os ambientes se tornam insalubres, há riscos de contaminação, infestação e incêndios. O isolamento social é quase sempre presente, e muitos indivíduos desenvolvem paranoia ou hostilidade diante de intervenções externas, inclusive familiares.

O tratamento exige abordagem interdisciplinar. Psicoterapia, especialmente em moldes cognitivo-comportamentais, pode auxiliar na reestruturação de crenças associadas ao apego disfuncional aos objetos.

O uso de ISRS, antipsicóticos atípicos ou estabilizadores do humor pode ser indicado em função das comorbidades clínicas.

Contudo, o principal desafio terapêutico está na baixa consciência de adoecimento (anosognosia). Isso gera alta resistência ao tratamento, abandono precoce da intervenção e necessidade de acompanhamento contínuo por equipes de saúde mental e assistência social.

Em contextos extremos, a atuação forense torna-se necessária. Indivíduos em situação de risco à própria saúde ou à coletividade podem ser avaliados quanto à sua capacidade civil, autonomia e discernimento, podendo haver encaminhamento para interdição parcial ou total, dependendo do grau de comprometimento.

As avaliações psicológicas e neuropsicológicas em contexto forense devem levar em conta a capacidade de autogestão, o risco sanitário, a aderência ao tratamento e a possibilidade de discernimento quanto às próprias condições de moradia e autocuidado.

Laudos bem fundamentados podem subsidiar medidas protetivas, intervenções judiciais e políticas públicas de apoio.

Embora o termo “Síndrome de Diógenes” permaneça em uso clínico e popular, ele é tecnicamente impreciso e carrega conotações estigmatizantes. A preferência, em ambientes acadêmicos, é por expressões como acúmulo patológico com negligência funcional severa, que melhor descrevem a complexidade do quadro

A complexidade do fenômeno exige, portanto, intervenção precoce, manejo cuidadoso da resistência e construção de rede de apoio. Trata-se de um quadro cuja raiz está na interface entre o biológico, o psíquico e o social, exigindo escuta qualificada e ações integradas

Além da complexidade estrutural do transtorno, é importante destacar que a Síndrome de Diógenes apresenta variações clínicas significativas, sendo possível reconhecer perfis distintos entre os pacientes.

Estudos observacionais indicam dois grandes grupos: os chamados acumuladores ativos, que coletam e transportam objetos de forma intencional, e os acumuladores passivos, que simplesmente não descartam o que se acumula em seus ambientes.

Ambos os perfis compartilham déficits executivos, mas com nuances que impactam diretamente a conduta terapêutica e jurídica.

Mulher - Síndrome de Diógenes
Mulher – Síndrome de Diógenes

Em alguns casos, o quadro se desenvolve de forma reativa após eventos traumáticos, como perdas familiares, catástrofes pessoais ou separações afetivas.

Tais eventos podem funcionar como gatilhos para o comportamento de acúmulo, especialmente em indivíduos com estruturas de personalidade mais vulneráveis.

Nesses contextos, o acúmulo pode representar uma tentativa disfuncional de controle ou substituição emocional.

No campo dos modelos explicativos, além das evidências neurofuncionais, há hipóteses psicodinâmicas que abordam o acúmulo como mecanismo de defesa regressivo, frequentemente relacionado a experiências de abandono ou carência afetiva precoce.

A manutenção de objetos, ainda que inservíveis, pode simbolizar tentativas inconscientes de preservar vínculos, proteger-se de perdas e restaurar controle frente ao caos interno.

Do ponto de vista sistêmico, o comportamento acumulador pode estar inserido em dinâmicas familiares negligentes, permissivas ou por vezes coniventes, com funcionamento relacional marcado por evitamento, silêncio e colapso dos papéis parentais.

Há registros clínicos em que mais de um membro da mesma família apresenta comportamentos semelhantes, sugerindo tanto influência ambiental quanto possível predisposição genética.

A intervenção nos casos de Síndrome de Diógenes demanda, frequentemente, atuação conjunta entre equipes de saúde, órgãos jurídicos, assistência social e, em alguns casos, conselhos tutelares ou unidades de vigilância sanitária.

A resistência ativa à intervenção gera conflitos éticos sobre o limite entre respeito à autonomia individual e proteção da saúde coletiva.

O uso de intervenções compulsórias, como remoções forçadas de objetos ou internações involuntárias, permanece como um tema delicado. A legislação brasileira permite tais medidas em situações de risco iminente à integridade física ou mental do indivíduo, ou quando há comprometimento da saúde pública.

No entanto, sem um parecer técnico criterioso e bem fundamentado, tais ações podem se configurar como violação de direitos fundamentais, sobretudo quando desprovidas de acompanhamento psicossocial posterior.

Casos emblemáticos documentados na literatura revelam que, mesmo após remoções forçadas e limpeza total do ambiente, os pacientes frequentemente voltam a acumular em poucos meses. Isso ocorre porque a ação externa, isolada, não atua sobre os núcleos psicopatológicos que sustentam o comportamento. O ciclo só pode ser interrompido com intervenção prolongada, suporte multidisciplinar e, sobretudo, vínculo terapêutico consolidado.

Em contextos urbanos, a visibilidade da síndrome tem aumentado, principalmente entre populações em vulnerabilidade. Contudo, ela também acomete indivíduos com alto nível educacional, histórico ocupacional relevante e bom funcionamento pré-mórbido.

A deterioração pode ocorrer de forma progressiva e, muitas vezes, invisível por anos, até ser percebida por terceiros — geralmente quando o colapso ambiental já é extremo.

A formulação de políticas públicas eficazes deve considerar a Síndrome de Diógenes como uma condição crônica de alta complexidade clínica e social.

Protocolos interinstitucionais devem ser construídos com base em evidências, visando o cuidado longitudinal, a preservação da dignidade e a mediação jurídica quando necessária.

Programas de visita domiciliar, centros de apoio psicossocial e unidades de atenção psicogeriátrica são dispositivos fundamentais para essa população.

Do ponto de vista forense, há crescente demanda por laudos técnico-periciais que analisem a capacidade civil, a competência para atos da vida cotidiana, o risco de autonegligência e o impacto ambiental gerado pelo comportamento acumulador.

Esses documentos devem conter avaliação neuropsicológica, análise do risco psicossocial, histórico evolutivo e condições atuais de discernimento.

É fundamental que o profissional da psicologia esteja capacitado para distinguir entre acúmulo voluntário, estilo de vida excêntrico e manifestações clínicas da síndrome. A ausência de delírios ou alucinações, por exemplo, não afasta o diagnóstico funcional, mas exige maior acurácia na delimitação do impacto sobre a autonomia do sujeito.

Nos casos em que há indicação de interdição parcial ou total, recomenda-se que as medidas judiciais sejam acompanhadas de planos terapêuticos interdisciplinares, evitando que o indivíduo seja apenas afastado da tomada de decisões sem a devida reabilitação social e emocional.

A interdição, por si só, não constitui tratamento — e sem suporte técnico continuado, pode agravar o quadro de exclusão.

A Síndrome de Diógenes, embora muitas vezes abordada de forma caricata ou estigmatizante pela mídia, é uma expressão concreta de falência neuropsíquica crônica, marcada por sofrimento invisível, recusa de contato e fragmentação do eu. Sua abordagem exige conhecimento técnico rigoroso, sensibilidade ética e articulação entre saberes.

Diante da complexidade do quadro, reforça-se a importância de formações continuadas em psicopatologia, neurociência clínica e avaliação psicológica aplicada ao contexto jurídico, de modo que os profissionais envolvidos estejam aptos a atuar tanto na dimensão terapêutica quanto na pericial, promovendo intervenções que respeitem os direitos do paciente e da coletividade.

Escritora científica pelo ORCID (Open Researcher and Contributor ID)
Identificação Internacional, 0009-0001-2462-8682

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