O gênero da fantasia é muito popular na literatura contemporânea e consagra diversos autores bastante conhecidos como Gabriel García Marques, Stephen King, Murilo Rubião, Edgar Allan Poe e Marcel Aymé.
Todavia, o movimento é muito mais antigo do que se supõe, eis que surgiu em um momento histórico específico da Europa Ocidental, quando o poder de Estado pela Igreja Católica estava enfraquecendo, concedendo espaço para o estudo das ciências nos séculos XVIII e XIX.
Influenciados, portanto, pelo rompimento dos dogmas católicos e pela liberdade investigativa, os mistérios acerca da natureza do homem começaram a surgir de tal forma que intelectuais questionavam o que separava a ficção da realidade/racionalidade.
Pode-se afirmar que o gênero fantástico possui a intenção de subverter a realidade, utilizando, para tanto, elementos insólitos e sobrenaturais, mas sem nunca perder sua plausibilidade para problematizar a sua visão de mundo.
Assim sendo, resta evidente sua finalidade específica em questionar o mundo ao seu redor e a própria natureza do ser humano, denominada pelos teóricos de “função social” do fantástico.
Tal evidência gera, consequentemente, uma característica universal e atemporal de seu gênero.
Além disso, quando nos apropriamos de nossa imaginação para criar mundos míticos, nos aproximamos ao mesmo tempo da realidade, pois a condição humana e o realismo tornam-se inevitavelmente a referência do escritor.
O exemplo mais antigo deste caso são as fábulas, as quais se utilizam de elementos similares para, ao final, expor sua moral.
Em outras palavras, no caso da literatura, elaborando premissas acerca de valores, ética e teorias envolvendo a natureza do ser humano, as histórias que são extraídas da própria imaginação e da criatividade do seu escritor são o que fazem com que as obras se atualizem durante a história sob diversas formas.
Um dos exemplos da literatura fantástica é o “O Passa-Paredes”, pelo escritor francês Marcel Aymé, originalmente publicado em 1943, o qual consiste em uma coleção de dez contos explorando, por meio do seu estilo fantástico, suas críticas e visões de mundo em uma época de ascensão do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial e marcada por uma intensa crise na França não somente em relação à sua economia, mas também à degradação dos valores morais e sociais.
Suas impressões, portanto, permaneceram imortalizadas em uma obra que segue atual e de pertinente discussão.
Importa salientar que a relação que surge entre a memória da Segunda Guerra Mundial de Marcel Aymé e seu caráter universalista é em razão do gênero literário fantástico empregado pelo autor, eis que sugere, na verdade, uma exploração da natureza humana em geral.
Sendo assim, as simbologias aplicadas a partir da exploração de seu imaginário em relação a contextos e realidades extraordinárias e, por vezes, absurdas de seus contos, permitem dialogar, ser interpretadas de várias formas, estabelecer parâmetros, comparações e até mesmo paradoxos com diversas sociedades e realidades no mundo inteiro.
Como exemplo, temos O Cobrador de Esposas, no qual maridos pagam suas dívidas com suas esposas; em O Decreto, a Segunda Guerra Mundial toma fim apenas pela imposição de uma lei e; O Provérbio nos conta a história de um pai que ensina seu filho a fazer a lição de casa, mesmo não sabendo as respostas para as perguntas.
Marcel Aymé, deste modo, explora os valores societários a partir do que ele mesmo considera ou conceitua como verdade ao quebrar a coerência lógica de sua narrativa e ao desenvolver situações ficcionais para, assim, estabelecer um pensamento crítico do mundo em sua volta.
Em razão dessa imaginação ilimitada, nós podemos traçar um paralelo com diversas realidades, inclusive a brasileira.
O tom fabulesco, portanto, do gênero fantástico, é denotado pela sua abordagem moralista e crítica à uma sociedade corrompida e ao mesmo tempo resiliente através de elementos extraordinários advindos do imaginário.
Embora tenha sido pensada e desenvolvida há 74 anos por Aymé, demonstra em todos os seus contos ser uma característica relacionável à sociedade moderna brasileira, quiçá do mundo, bastante discutível.