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Mulher de 80… Sonhando com seus 20 anos, vividos intensamente.

Toda vez que passava apressada pela praça, estava lá a Bianca, uma senhora de 80 anos, sentada no banco da praça, tomando o sol da manhã. Recomendação médica, necessitava de vitamina D, vitamina do sol.

Corpo cansado, já não obedecia tanto seus movimentos.

Enquanto ficava observando as árvores frondosas, as moitas verdes e viçosas, flores, borboletas, pássaros diversos, crianças brincando, as mães tagarelando noutro banco distante, barulho de carros passando na rua à distância de uns 30 metros de onde estava, cochilava, entrava em devaneio, o sol está ameno, uma fresca brisa soprando o rosto macilento e cheio de rugas.

Ela não a sente, quando está assim, ela “voa” longe, volta ao passado, quando tinha seus vinte anos.

Um dia, para satisfazer minha curiosidade, me sentei ao lado dela, no banco e puxei conversa, disse que ela não podia ficar assim tão sozinha, que ela precisava de amigos, sugeri que fosse até as mães tagarelas para travar amizade com elas, porém ela disse que tinha seus pensamentos, e que não conseguiria trazer de volta o tempo passado, se ficasse conversando ou ouvindo as bobagens alheias.

Perguntei sobre os pensamentos que tanto ela preservava, e do que se tratava, pedi a ela que dividisse comigo se não fosse segredo.

Após muito pensar e olhar séria nos meus olhos, ela resolveu me contar o que ia de tão precioso na sua cabecinha e que guardava a sete chaves no seu coraçãozinho cansado.

Ao iniciar a narrativa, fiquei calada para que ela pudesse contar sem interrupção.

Contou que sempre que cochilava, voltava no tempo, exatamente quando tinha 20 anos, e resolvendo cuidar de sua própria vida, saiu do campo onde nascera e crescera, para trabalhar na cidade “capital”, arrumando um serviço doméstico em meio período enquanto estudava o curso supletivo, pois na roça a escola ia até o primário, não tendo como dar continuidade, pois para isso teria que migrar para a capital.

A vida ia relativamente bem, morava numa pensão para jovens, trabalhava na casa de família pela manhã, seguindo para a escola após arrumação do almoço, tendo a noite para fazer a lição de casa.

A rotina me agradava, os patrões eram gentis e educados, ensinou tudo que tinha que fazer e depois disso, foi fácil seguir a rotina. Ela tinha um temperamento calmo, sem muita extravagância para bailes ou festas.

Não tinha amizades ruins, as garotas que morava na pensão também estavam lá para estudar, porém, elas não trabalhavam, os pais as custeavam.

Quando a patroa teve o bebê, ela ficou doente, tendo que ter cuidados especiais, então o patrão pediu para passar a morar na casa, para ter mais tempo para cuidar da casa, do bebê e da mãe doente.

Ela aceitou penalizada. A esposa veio a falecer em pouco tempo após a sua mudança para a casa.

Depois disso acabou cuidando da casa por tempo integral, deixou a escola, pois não tinha como cuidar do bebê que requeria tempo integral da vida dela.

Naquele tempo, tudo era mais fácil, era ágil, corpo franzino, as curvas demorando a aparecer, parecendo mais, uma adolescente, com seus 16 anos.

Três anos se passaram, e ainda continuava a mesma garota franzina, de transas longas emoldurando as costas, vestido de florezinhas azuis, saia rodada, sandálias de tirinhas, tipo rasteirinha.

Quando dava, levava o menino para a praça, ele corria entre as flores, eu ia atrás sentindo o perfume suave, enquanto tomava conta do garotinho.

Ganhava a vida assim, babá de um menino lindo e traquina de três anos, chamado Thomas, cuja mãe falecera de uma doença rara.

O pai não cuidava dele, não dava atenção, tinha que trabalhar, essa era a desculpa que ele sempre dava, quando Bianca requisitava a presença dele para discutir situações, afinal o garoto precisava de uma escolinha, se enturmar com outras crianças da idade dele.

Tom, como ela o apelidara era meigo, mesmo nas traquinagens dele, sempre que Bianca chamava a atenção ele obedecia, abaixava a cabeça, mas no minuto seguinte saia correndo com aqueles sorrisos lindos de covinha nas bochechas rechonchudas, procurando outra coisa para brincar.

O pai de Tom, Timothy, era de descendência italiana, claro de olhos azuis, cabelos de um castanho claro brilhante que refletia ao sol. Tinha 30 anos, na época, não queria saber de se casar novamente.

Sempre que as tias o visitavam, falavam que deveria se casar, dar um lar ao menino, e ele sempre se esquivava, dizendo que bastava ter enterrado uma.

Bianca achava macabro quando ele falava assim, mas ela não se intrometia, afinal ele era seu patrão. Não devia satisfações a ela.

O tempo ia passando, Bianca contava com 27 anos, levava o Tom para a escolinha, ela mesma havia matriculado o menino na escolinha perto da casa, como se fosse a mãe dele, pois o pai era ausente. Não dava atenção, nem perguntava como ele ia na escola.

Um dia, contou Bianca, lembrou como se fosse hoje, estava chegando o dia dos pais, todas as crianças preparavam uma surpresa para seus pais, e o Tom não queria fazer a atividade, porque não tinha pai, dizia ele, tristonho.

Ele dizia que tinha mãe Bianca que servia de pai, se fosse fazer algo seria para ela, não queria recortar a gravata como os coleguinhas.

A surpresa era uma gravata recortada em cartolina e pintada como cada um queria e enfeitaria uma gravura com uma foto de pai que seria colado. Ele nem tinha a foto do pai, dizia choroso.

Bianca foi falar com Timothy, e ele se recusou a tirar a foto para a tal gravura, dizendo que não tinha tempo para essas bobagens, deixando Bianca furiosa. Ela tomou as dores do garoto como se ele fosse filho legítimo dela. Brigou feio com ele, virou uma leoa diante de tal situação.

Ele ficou muito surpreso, parecendo ter acordado de um transe. Parecia que estava vendo um fantasma, balbuciando que no dia seguinte iria sem falta.

Realmente, no dia seguinte ele seguiu cedo para uma casa de fotos, trazendo uma foto tirada 3×4 no horário do almoço, o que foi também surpresa, pois ele nunca retornava à casa antes do final do expediente.

Como ele trouxe, deu tempo de levar a foto e fiz surpresa para o Tom, colando a foto do pai na gravura, dizendo que agora faltava a parte dele, que teria que recortar e pintar a gravata.

Precisava ver a carinha feliz que ele fez, parecia renascido, aprimorando no seu trabalho de arte. Recebeu elogios de sua professora, que dizia a todos que o quadro de Tom era o mais bonito. Não tinha nenhum borrão.

No dia da festa, o Timothy “diferente” estava lá para assistir ao teatrinho preparado pelas professoras, estava sorridente e feliz pelo filho, elogiou o presente quando chegou a hora de receber o tão falado quadro, chorou e abraçou o filho.

Eu, sempre vou te amar meu filho, me perdoa pela ausência eu estava fora de mim, dizia enquanto beijava o rostinho corado do filho.

Bianca contou que nunca tinha sentido uma emoção tão forte, foi como se ele, se libertasse de um transe. Estava outro, rosto mais sereno, postura ereta, até simpático.

Depois disso, ele se casou com uma prima distante que viera visita-lo.

Bianca não conseguia entender de onde havia surgido aquela mulher que virou a cabecinha de seu patrão. Porém, a sua missão naquela casa havia acabado.

Enfim, ela estava na mesma de quando saiu da roça, pobre, sem estudos, desanimada para recomeçar.

Recebeu uma quantia em dinheiro que o patrão depositou numa conta poupança, dizendo que seria para a aposentadoria dela, e ela respeitou, não tirando nem um centavo, começando a trabalhar de doméstica ali e acolá, até que no presente momento, nada tendo, nem se casando, pois tinha que trabalhar e dar de si para outra família, cuidar para o bem-estar de outros por um salário de doméstica.

Bianca conta que se não fosse a aposentadoria que havia guardado e rendido um juro considerável, estaria ainda trabalhando, aos 80 anos, sem tempo para o seu sol matinal e nem tempo para os seus devaneios.

Chorei quando ela contou a sua singela história, e chorei mais ainda ao ver que sua felicidade consistia naquele tempo vivido na casa de Timothy, cuidando de Tom.

Senti como se o tempo dela tivesse parado naqueles seus 20 e poucos anos, há ainda que se pensar que ela havia amado Timothy silenciosamente, somente para si, ficando desanimada com a vida, quando seu grande e secreto amor se casou com uma completa estranha ao seu convívio.

Sabe-se lá o que aconteceu em seu íntimo, naqueles tempos idos.

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Heloísa Kishi

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