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Memórias apagadas – Reflexão de uma idosa com Alzheimer

Memórias apagadas – Não é nem de longe o que Álice gostaria de registrar aqui, no entanto ela sente necessário. A sua memória a abandona, cada dia um pouco.

O passado some deixando lacunas horríveis, quando ela olha para dentro de si, se iguala a um queijo suíço, onde a carcaça está intacta, porém em um olhar de Raio-X, se vê esburacada como tal.

Tudo começou quando Álice se viu só, dentro de quatro paredes. O seu amor a deixara. Foi seguir seu caminho sem fim, nem ao menos imaginou como ficaria uma pessoa sem recursos com seus dois filhos pequenos.

Ficou dias sem ação, apática, pensativa. Via seus dois filhos brincarem no chão da sala, e agora?

Nesse momento, percebeu quão valente teria que ser, não deixar faltar nada, suprir aos pequenos, confiados a ela por Deus, cuidar e educar não seria nada fácil, dar teto, saúde, roupas, comida, estudos.

Foi aí que se vestiu de armadura e foi à luta, buscou sobrevivência.

Procurou emprego, encontrando rapidamente. Afinal era formada em direito, pelo menos isso o marido deixou fazer, fez valer o seu diploma, conseguindo uma ótima colocação na empresa que a contratara.

Arregaçou as mangas, deu tudo de si, destacando-se em tudo, logo estava no comando de um departamento inteiro na mesma empresa.

Comprou uma casa pequena num bairro simples, um carro de segunda mão, mas útil para manter os filhos na mesma escola que estavam acostumados. Prometera e determinada como era, logo teria coisa melhor para dar aos filhos.

O caminho era esse.

O tempo passara sem que Álice sentisse. O trabalho fluía, morava num bairro melhor perto do trabalho, comprara um carro para cada filho que agora estava cursando universidade, eles precisavam e mereciam, afinal nunca deram trabalho, seguindo o mesmo foco e objetivo da mãe.

O que Álice não percebeu é que os filhos nunca a viam, portanto não sentiam falta dela, sendo criados no automático.

A falta do pai não afetara os dois, que entenderam e se mantiveram obedientes e educados conforme os preceitos das escolas que frequentavam.

Era família sem parente por perto, ninguém se preocupara com ela ou com os meninos, quando o pai falecera repentinamente, tendo que cuidar do enterro e de tudo o mais, sozinha.

As crianças foram criadas numa creche, e depois em escolas de tempo integral, ela nunca pediu ajuda a quem quer que fosse, pelo contrário, oferecia ajuda a única amiga que arrumara, quando esta pediu carona para levar o seu filho, que estudava na mesma creche, e depois, continuaram amigas até ela se mudar.

Os filhos, independentes, saiam sem comunicar, por vezes, posando fora de casa, porém ela nunca os recriminara, afinal no seu tempo de mocidade também queria essa privacidade.

Com o passar do tempo, aposentara-se. Sentiu que daí para a frente, cuidaria da casa em tempo integral, com boa aposentadoria e as economias rendendo juros, teria seus filhos, poderia paparicar para compensar o tempo perdido.

Ledo engano, os filhos, apesar da educação e cuidados recebidos, bem-estar e liberdade financeira, não queria mais saber da mãe, ora insinuando não precisar pois já crescera, ora respondendo mal, como, não precisar de opinião de velha, ultrapassada, fora de moda, coisa e tal.

No começo ela não sentiu, achando que tinham razão, porém com o tempo isso a afetara mais que necessário, dando a ela um sentimento de cansaço, prostração, ela começou a sentir incomodada com essa situação, quanto mais era tratada assim, mais ela se sentia inútil.

Esquecendo por vezes, que outrora fora uma mulher guerreira, vencedora de uma situação difícil e criara com maestria dois pequenos indefesos. Agora, homens que não tinham necessidade dos cuidados dela.

Os filhos formados e com emprego fixo, saíram da aba da saia da mãe, compraram cada um uma moradia, e com o tempo iam espaçando tempo de visita, até que não mais a visitava por anos.

A tristeza era tão grande, a ausência doía, e pedia visita, porém a cada visita os filhos estavam mais sem paciência com ela, e a cada insulto ou ofensa do gênero, ela se apagava um pouco, e quando se apagava, tentava buscar dentro dela, aquela mulher jovial e cheio de forças, e a cada tentativa, uma luz apagava dentro dela, deixando lacunas vagas e embaçadas, não conseguindo lembrar o que havia feito naquele dia.

Ela entendeu que estava perdendo noção das coisas, então antes que se agravasse, ela vendeu a mansão onde morava, chamou seus filhos para uma reunião, tendo que os convocar num edital, pois eles moravam longe, não mais visitando-a, por anos.

Dividiu os haveres pela venda em partes iguais, dando metade para cada um, sentindo que cumprira a sua missão, afinal aquela casa havia comprado para a moradia deles, era grande demais para ela e não queria nada além do valor que daria para comprar uma casa menor para poder passar os seus dias.

Os filhos não titubearam em receber cada um o seu quinhão e se despedir para nunca mais.

Sua mãe derramou uma lágrima vendo as costas de seus filhos que ao menos a abraçou antes de sair do cartório.

Comprou uma casinha à beira mar, passando a viver de sua aposentadoria, ficava horas admirando a beleza das ondas que batiam na areia e retornavam para o horizonte salgado.

No pensamento dela, essas ondas vinham para buscar seus sonhos levando para o fundo do mar.

Estava cada dia mais apática, não falava mais, quando alguém perguntava alguma coisa, ela demorava muito para responder, por vezes nem respondia.

Um dia, precisou de cuidados médicos e pelo estado apático, o médico mandou chamar os filhos.

Um deles alegou impossibilidade por não poder se ausentar de seus negócios, outro veio.

A mãe olhou e não se recordou do filho, trazendo mal-estar ao ambiente.

Ele, olhando-a com o canto dos olhos, pediu o diagnóstico médico, ao se inteirar do estado de saúde dela, ficou desgostoso.

Aquela não lembrava a mãe que ele deixou no passado, nem de longe. Estava desarrumada, enrugada, bronzeamento que judiou da pele ao extremo, cabelos desgrenhados. Roupa então? Nem se fale, de tecido barato.

Não se comparava com a mulher executiva que comandava um departamento, que dava orgulho aos filhos de apresentar às amigas.

O que fazer com ela? Ele pensava, a cabeça dele girava a mil por hora, onde desovar essa mulher?

O médico disse que tirar da moradia dela nesse estágio trará um colapso na memória dela que já anda bem debilitada, teria que ele se mudar e ficar com ela na casinha dela, cuidar dela até o dia em que Deus a levar.

Para o desgosto dele, filho desnaturado, porém no momento desempregado, era mão na roda, ganharia uma moradia, alugaria o dele e ganharia um trocado para gastar com as mulheres. Esse era o pensamento que ia célere na cabeça dele.

Não durou muito tempo, até que o filho se entediou e começou a ver tanta diferença entre os dois, começou a destrata-la chamando-a de idiota, de burra, desmiolada e assim por diante.

Disse que não era para ele estar ali no fim de mundo, que no começo havia aceitado como se tirasse umas férias na praia, mas de longe era a praia de preferência dele. A casinha estava velha, sem cuidados, cheirava a mofo.

Mandava que ela assinasse a venda, mas a cada recusa dela, um insulto.

A cada insulto algo se perdia dentro dela, como um ribombar de um trovão, que ao cair, deixava um rombo na memória dela. Álice estava perdida, piorava a cada dia.

Ela se viu numa clausula, como prisioneira de sua própria moradia, medo de sair daquela casa para um local incerto, ia se perdendo ponto a ponto, quando tentava lembrar via somente um borrão escuro diante de si.

Refugiava-se dentro de si, lá atrás, quando ainda era nova, tinha vida, morava na roça com os pais.

Depois se casara, foi morar longe de família, teve dois lindos meninos. Cadê os seus meninos?

Onde eles estão? Decerto brincando no quintal. Vinha uma mancha cinza ofuscar a vista, logo se via sozinha num local feio, então chorava. Depois se via dentro da sala com seus dois pequenos brincando inocente.

Logo vinha uma chuva de pedra, ofuscando a visão outra vez. Assim, sucessivamente, trazendo uma incerteza mental nela que não conseguia mais discernir o certo do errado.

O hoje e ontem, nunca tinha amanhã, somente hoje escuro e ontem feliz.

Preferia ficar no ontem feliz.

Que saudades daquela época, onde você está meu amado marido?

Porque você se foi? Porque não me levou?

Eu vejo dois meninos, porque só vejo um homem? Quem é esse homem?

E o outro menino? Não se tornou homem? Como se chamam mesmo?

Tenho medo de perguntar e levar outro sermão.

Não… deixe estar…

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Heloísa Kishi

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