Tinha uma garota, moradora de rua. Sentada à beira da calçada, admirava todos os carros que por ali passavam.
A moradora de rua adorava carros. Ia catalogando mentalmente, os modelos, os passageiros, os motoristas, as cores, as marcas, os pneus, assim passando o tempo que tinha de sobra, como ela mesma contava.
Faz muito tempo, ela apareceu naquela rua, como as pessoas do local não se incomodava com a presença dela, ali fez moradia.
O nome dela era diferente, complicado, estrangeiro, ela preferia que todos a chamassem de Maria, simplesmente Maria, como falava.
Achava esse nome lindo, disse que pegou emprestado da mãe de Jesus. Depois devolveria.
Passaremos a chama-la assim, como ela preferia.
Maria, sem eira nem beira, sem família, sem afeto, morava de favores, ganhava roupas, calçados, comida, o quanto bastava para viver, dormia na rua, nas marquises da vida.
Não fazia nada errado, não maltratava ninguém, não tinha costumes feios, somente morava onde podia.
Mudando de endereço, quando os proprietários das calçadas se cansavam da presença dela. Nunca reclamou, sempre acatou o que lhe falavam.
Era limpa, não tinha cheiro, mas não era perfumada. Tinha um rosto comum.
Cabelos sempre amarrados num rabo de cavalo, trazendo ao semblante, um ar juvenil, já passava dos trinta.
Antes de estar naquela calçada, ela morava em outro bairro de outra cidade.
Era mais jovem, com seus vinte anos, igualmente moradora de rua, porém naquela cidade, não podia dormir na rua, tinha que se retirar no albergue do bairro, tomar banho, fazer a higiene pessoal, ganhava janta, que podia ser sopa, ou lanche, e dormia num colchão estendido na ala feminina.
Era um galpão bem grande, onde era dividido em dois cômodos, para homens e para mulheres, cada cômodo tinha três banheiros, muitos colchões pelo chão que você utilizava, e ao amanhecer recolhia e colocava num canto, antes de ir para a rua, isso diariamente.
Num fatídico dia, ela decidiu entrar no bar de onde ela ficava e pediu água para o dono, Rodrigo, gentilmente ofereceu um copo descartável com água gelada.
Estava tomando a sua água e percebeu um senhor distinto parecendo estar à procura de algo perdido, que não encontrara ainda.
Disse ser um produtor de novelas, precisando de um personagem feminino, para o papel de mendiga, foi à rua buscar quem interpretasse, e ao avistar a figura jovial e bem-apessoada de Maria, logo abordou-a, perguntando se não queria fazer o papel de mendiga.
Ela achou graça, riu alto e disse que ele havia adivinhado a sua profissão, pois era o que ela fazia, morava na rua. Que o papel cairia muitíssimo bem, nem precisaria interpretar, já seria espontâneo.
Nem falaram em cachê, nem em mais nada, ela aceitou de cara. Foram num carro da produção e nunca mais ouviram falar dela naquela cidade.
O que aconteceu foi que, Maria fora levada para uma cidade vizinha, onde a cena foi rodada, e ela interpretou o papel designado com maestria.
Acabando o trabalho, não pode ser contratada, pois contou que não tinha documentos, que não era brasileira, que tinha sido abandonada pelos pais e não tinha onde dormir.
Nesse molde não conseguindo contrato, foi dispensada com um gordo dinheiro, a título de pagamento.
Maria que nunca havia visto um dinheiro, muito menos aquela quantia, tratou de viajar para o litoral, foi conhecer as praias, era o sonho de consumo dela desde criança. Nunca tendo oportunidade.
Ela, estrangeira, deixada pelos pais que nunca mais a procurou, desde os seus 10 anos, sem documento, sem ninguém conhecido, nesta terra desconhecida, onde tinha vindo para as férias com os pais, nunca mais soube deles.
Aprendeu com as pessoas da rua, que a acolheram e deram o que comer, no começo. Logo aprendendo a se virar na vida, como era falado pelos seus amigos de rua.
Que tinha que se virar se não quiser passar fome nem frio.
Lá nas praias, se divertia durante o dia, dormia nas areias durante a noite, não achava ruim, pois era o que ela fazia.
Um belo dia conheceu um rapaz que foi se achegando e demonstrando amizade, juntando-se a Maria nas areias para dormir à noite e durante o dia ficava com ela que pagava tudo. Porções de peixe e bebidas, nos quiosques.
Parecia rica, como ela se intitulava.
Maria nunca pensou que ele estava lá para se aproveitar do dinheiro que ela tinha, que gastava sem pestanejar. Porém, um dia tudo acaba, e a grana se foi.
Ele também se foi. Ao ver que dali não saia mais a boa vida que levava. Nem ao menos o nome dele ela sabia e nem de onde ele era.
Apareceu e pronto. Maria o aceitou como tinha sido aceita anos atrás.
Maria, desolada, desiludida, pensou que teria que retornar à cidade, pois a praia estava ficando perigosa para ela, sozinha, os homens queriam se aproveitar sexualmente, as mulheres a tratavam mal.
Sentiu saudades da cidade e de bons tratos que recebia.
Pediu carona a um motorista de caminhão, entregador de peixe fresco nos mercados da cidade, e foi levada para uma cidade qualquer, ficou com esse motorista até que ele a dispensou, dizendo que teria que retornar ao litoral, deixando-a ali mesmo.
Depois disso, ela andou muito, indo de cidade em cidade, sempre dormindo nas ruas, onde havia marquise.
Às vezes, dormindo nos bancos de praça, Maria era abordada pelos homens que igualmente de rua, a queria para sexo casual.
Maria aceitava, afinal, o que ela esperaria da vida, não podia querer senão um pouco de companhia para colorir sua vida tão malograda.
Não sabia sua procedência, sem documento que a identificasse, seus pais não deram busca de seu paradeiro para, pelo menos saber de onde era.
Hoje, aos trinta e poucos anos, ali estava, fazendo o que sempre fez, catalogando mentalmente os carros que ali passavam.