Diferenciação entre vergonha e fobia social no âmbito pericial
Emoção adaptativa ao transtorno clínico: diferenciação entre vergonha e transtorno de ansiedade social no âmbito pericial
A diferenciação entre a vergonha, enquanto emoção adaptativa, e o transtorno de ansiedade social, enquanto condição clínica, é crucial na prática pericial.
Embora ambos envolvam respostas de inibição social, suas origens, intensidade e duração diferem significativamente, impactando diretamente a avaliação psicológica forense.
A vergonha é uma emoção universal e transitória, relacionada à percepção de inadequação diante de normas sociais ou expectativas alheias. Sua função adaptativa é regular o comportamento, favorecendo a coesão social e o aprendizado moral.
Quando passageira, cumpre papel protetivo, evitando condutas que possam gerar rejeição ou punição social.
Por outro lado, o transtorno de ansiedade social (TAS) — termo técnico atualmente preferido à antiga “fobia social” — constitui um quadro psicopatológico persistente, caracterizado por medo intenso e irracional de situações de avaliação social.
O indivíduo teme ser julgado, humilhado ou rejeitado, apresentando sintomas físicos e cognitivos que ultrapassam a simples autocrítica.
Do ponto de vista clínico-forense, a diferença temporal e funcional entre esses fenômenos é determinante.
Enquanto a vergonha se manifesta de forma breve e situacional, o TAS mantém-se por pelo menos seis meses, segundo o DSM-5-TR, comprometendo significativamente o desempenho ocupacional, acadêmico e relacional.
Em muitos casos, seus sintomas são confundidos com os de transtorno de pânico, dada a sobreposição de manifestações fisiológicas, como taquicardia, tremores e sudorese.
A análise pericial deve considerar, portanto, a frequência, a duração e o contexto dos sintomas, avaliando se a resposta emocional observada cumpre uma função adaptativa ou se indica disfunção psíquica.
Instrumentos psicométricos e entrevistas semiestruturadas podem auxiliar na delimitação diagnóstica, permitindo ao perito inferir o grau de incapacidade emocional ou social envolvido.
Além disso, aspectos culturais e situacionais precisam ser ponderados. Em determinadas culturas, a demonstração de vergonha pode ser interpretada como sinal de respeito ou modéstia, e não como indício de patologia.
Assim, a interpretação forense deve integrar fatores contextuais, evitando diagnósticos reducionistas que desconsiderem a complexidade psicossocial do sujeito.
A diferenciação entre vergonha e transtorno de ansiedade social tem implicações diretas nas perícias psicológicas e psiquiátricas.
Segundo Clark e Wells (1995), o transtorno de ansiedade social se sustenta por um ciclo cognitivo de autoavaliação negativa, em que o indivíduo interpreta suas reações corporais como sinais de fracasso, reforçando a evitação social.
Já a vergonha, conforme Tangney e Dearing (2002), está ligada a uma resposta emocional pontual, associada à consciência moral e à percepção de erro diante de padrões internalizados, sem necessariamente gerar comprometimento funcional prolongado.
Na prática pericial, identificar esse limiar entre emoção e transtorno é fundamental para evitar equívocos diagnósticos e conclusões precipitadas.
American Psychiatric Association (2022), em seu DSM-5-TR, destaca que o transtorno de ansiedade social envolve medo persistente de situações em que o indivíduo possa ser exposto ao escrutínio alheio, e que essa ansiedade é desproporcional à ameaça real, interferindo de modo significativo nas atividades cotidianas.
O perito deve, portanto, diferenciar uma resposta emocional adaptativa de uma condição clínica que demanda intervenção terapêutica.
De modo prático, a avaliação pericial deve integrar a análise qualitativa das narrativas do avaliado, observações comportamentais diretas e instrumentos psicométricos padronizados, como a Liebowitz Social Anxiety Scale (LSAS) e o Social Phobia Inventory (SPIN).
Esses instrumentos permitem mensurar a frequência e a intensidade do medo social, contribuindo para uma classificação técnica mais precisa.
Sob a ótica forense, a vergonha raramente configura incapacidade psíquica, uma vez que não causa prejuízo funcional duradouro.
Em contrapartida, o transtorno de ansiedade social pode comprometer a capacidade laboral, a autonomia e até a imputabilidade em determinados contextos jurídicos, especialmente quando associado a comorbidades como depressão maior ou transtornos de pânico (Stein & Stein, 2008).
Além disso, deve-se considerar o impacto da vergonha e da ansiedade social nas dinâmicas de culpa e responsabilização.
Enquanto a vergonha tende a se voltar ao eu “eu sou inadequado”, a culpa refere-se ao comportamento — “eu fiz algo errado”. Essa distinção, apontada por Lewis (1971), é essencial na compreensão dos mecanismos psicológicos subjacentes à confissão, negação ou racionalização em contextos criminais.
No âmbito judicial, peritos frequentemente enfrentam o desafio de diferenciar se a retração social do avaliado resulta de uma emoção momentânea de vergonha frente ao processo ou de um transtorno de ansiedade social estabelecido.
Essa análise tem valor probatório relevante, podendo interferir na determinação de danos morais, sofrimento psíquico ou redução de capacidade.
De forma complementar, Gilbert (2000) sugere que a vergonha, quando cronicamente internalizada, pode atuar como fator predisponente ao desenvolvimento de transtornos ansiosos e depressivos.
Assim, embora inicialmente adaptativa, sua persistência pode contribuir para padrões cognitivos disfuncionais que culminam no transtorno de ansiedade social — estabelecendo uma linha contínua entre emoção e patologia, e não uma separação estanque.
Portanto, o papel do perito é investigar se o sujeito avaliado apresenta uma emoção proporcional à situação vivida — o que indicaria adaptação — ou se há um medo desproporcional e persistente, acompanhado de evitação e sofrimento subjetivo intenso, elementos que configuram o transtorno.
Essa distinção requer sensibilidade clínica, conhecimento técnico e uso criterioso de evidências psicológicas e psicopatológicas.
O transtorno de ansiedade social em crianças e adolescentes gera prejuízos significativos em múltiplas áreas da vida. Diferente da vergonha pontual, que se dissipa com a exposição e o aprendizado social, o transtorno se caracteriza por medo persistente de avaliação negativa, evitando situações escolares, esportivas e de interação social (Beidel, Turner & Morris, 2007).
Esse padrão de evitação compromete o desenvolvimento de habilidades sociais, prejudica o desempenho acadêmico e aumenta a vulnerabilidade a isolamento e bullying.
Muitos profissionais, por falta de treinamento ou compreensão insuficiente dos critérios diagnósticos, confundem episódios de vergonha com transtorno de ansiedade social. Essa interpretação equivocada pode levar a diagnósticos errôneos, subestimando ou superestimando o sofrimento da criança ou adolescente (Clark & Wells, 1995).
Ao patologizar uma emoção transitória, corre-se o risco de criar estigmatização desnecessária; ao ignorar sinais clínicos consistentes, negligencia-se a oportunidade de intervenção precoce.
O transtorno, quando não tratado, tende a persistir e se consolidar na adolescência tardia e na vida adulta, interferindo na formação de relacionamentos íntimos, escolha profissional e inserção social (Stein & Stein, 2008).
Estudos longitudinais demonstram que indivíduos com histórico de ansiedade social na infância apresentam maior risco de depressão, abuso de substâncias e dificuldade de adaptação ocupacional, refletindo um impacto biopsicossocial de longo prazo.
Outro ponto crítico é a sobreposição de sintomas com a síndrome do pânico, o que frequentemente gera confusão diagnóstica.
Crises de sudorese, tremores, taquicardia e sensação de desmaio podem ocorrer em ambos os quadros, mas enquanto o pânico está associado a medo súbito e episódico de catástrofe, a ansiedade social mantém o foco no julgamento alheio e na evitação constante de situações sociais (Rapee & Heimberg, 1997; Hofmann & Otto, 2008).
Essa distinção é essencial para a perícia forense, evitando interpretações equivocadas em avaliações de dano psíquico ou capacidade funcional.
O impacto do transtorno de ansiedade social também se manifesta na construção da identidade e autoestima durante a infância e adolescência. Segundo Erikson (1968), essa fase é crucial para a formação do sentido de competência e pertencimento.
Crianças e adolescentes que vivem sob ansiedade social intensa podem desenvolver sentimentos crônicos de inadequação, dificuldade de assertividade e baixa tolerância à frustração. Tais consequências atravessam o desenvolvimento, comprometendo relações interpessoais e adaptabilidade na vida adulta.
A análise pericial deve considerar não apenas a intensidade e duração dos sintomas, mas também os efeitos cumulativos sobre o desenvolvimento biopsicossocial.
Reconhecer que o transtorno de ansiedade social é uma condição clínica séria, distinta da vergonha pontual, e diferenciar seus sintomas dos episódios de pânico, é essencial para fornecer avaliações precisas, orientar intervenções terapêuticas adequadas e fundamentar decisões jurídicas com base em evidências científicas.
Implicações legais e periciais
No contexto judicial, a diferenciação entre vergonha pontual e transtorno de ansiedade social possui relevância probatória. Avaliações incorretas podem levar a conclusões equivocadas sobre a capacidade civil, responsabilidade penal e dano psíquico.
Como observam Clark & Wells (1995) e Hofmann & Otto (2008), a confusão entre ansiedade social patológica e episódios de vergonha ou sintomas de pânico é frequente em perícias mal fundamentadas.
O perito deve analisar intensidade, frequência, duração e impacto funcional dos sintomas, utilizando instrumentos psicométricos padronizados, entrevistas clínicas e observações comportamentais.
Ferramentas como a Liebowitz Social Anxiety Scale (LSAS) ou o Social Phobia Inventory (SPIN) permitem identificar padrões consistentes de evitação, medo de avaliação negativa e comprometimento funcional.
Essa abordagem objetiva garante rigor científico, reduz vieses interpretativos e fundamenta laudos periciais com precisão.
A intervenção precoce é essencial para minimizar os efeitos a longo prazo do transtorno de ansiedade social. Programas escolares de habilidades sociais, terapia cognitivo-comportamental (TCC) e estratégias de exposição gradual têm se mostrado eficazes na redução de sintomas e na prevenção de comorbidades (Rapee & Heimberg, 1997; Beidel, Turner & Morris, 2007).
Profissionais de saúde mental devem estar atentos à diferença entre timidez normal, vergonha situacional e transtorno clínico. O diagnóstico precoce evita que crianças e adolescentes sejam rotulados equivocadamente ou submetidos a intervenções desnecessárias, prevenindo estigmatização e reforço de sentimentos de inadequação (Tangney & Dearing, 2002; Leary, 2007).
Além disso, a capacitação de psicólogos, pedagogos e profissionais de perícia é fundamental. Eles precisam compreender que episódios isolados de vergonha não caracterizam transtorno, e que a ansiedade social patológica apresenta duração mínima de seis meses, impacto funcional e risco de confusão com sintomas de pânico.
Discussão sobre diagnósticos equivocados
Um desafio frequente na prática clínica e pericial é a diagnosticação¹ incorreta. Muitos profissionais ainda interpretam qualquer comportamento de evitação social ou timidez como transtorno de ansiedade social. Essa abordagem simplista não só compromete a precisão do diagnóstico como também pode gerar intervenções inadequadas, reforçando sofrimento psicológico e prejudicando o desenvolvimento (Clark & Wells, 1995; Gilbert, 2000).
A confusão com síndrome do pânico é particularmente comum. Crises de sudorese, taquicardia, tremores e sensação de desmaio podem ocorrer em ambos os quadros, mas o gatilho e o foco do medo diferenciam os diagnósticos.
No transtorno de ansiedade social, o medo central está na avaliação negativa de terceiros, enquanto no pânico o medo é voltado para uma catástrofe iminente (Rapee & Heimberg, 1997; Hofmann & Otto, 2008).
Como conclusão, observo que o transtorno de ansiedade social constitui uma condição clínica grave que vai além da timidez ou vergonha pontual. Seus efeitos atravessam a infância, adolescência e vida adulta, impactando desenvolvimento acadêmico, relações sociais, carreira profissional e saúde mental.
A avaliação pericial deve ser conduzida com rigor científico, utilizando critérios diagnósticos claros, instrumentos psicométricos e análise contextual do histórico do indivíduo.
Distinguir corretamente entre emoção adaptativa e transtorno clínico evita diagnósticos equivocados, direciona intervenções terapêuticas adequadas e fundamenta decisões jurídicas justas.
A integração de evidências científicas, conhecimento clínico e interpretação contextual garante que o sofrimento psíquico seja compreendido em sua dimensão biopsicossocial, protegendo o bem-estar de crianças, adolescentes e adultos afetados.
¹ – Diagnosticação, entendido aqui como o ato técnico-científico de realizar o diagnóstico.
Escritora científica pelo ORCID (Open Researcher and Contributor ID)
Identificação Internacional, 0009-0001-2462-8682
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