A Educação acontece pela comunicação entre pessoas e a Comunicação é competência aprendida através do autoconhecimento e do diálogo.
O autoconhecimento e o diálogo honesto, consigo mesmo, dão origem, em prosa e poesia, à expressão da alma de um escritor em seu diálogo externo com o leitor que ultrapassa barreiras de tempo, espaço e culturas.
O autoconhecimento e esses diálogos honestos, interno e externo, foram para Florbela Espanca (1894 -1930), uma das primeiras feministas da literatura de Portugal, o traço marcante de sua obra de caráter extremamente pessoal e confessional.
Destaco, aqui, uma citação que reflete isso:
“O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessoa; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade… sei lá de quê!” (Correspondência; Cartas a Guido Battelli,1930)
A poeta expressa em sua obra um forte teor emocional, ao aliar seu sofrimento, desencanto e solidão a um desejo de ser feliz na busca de algo infinito e indefinido. Seu primeiro poema, em1903, A Vida e a Morte, introduz os temas presentes em muitos de seus textos.
Uma das fontes de sua inspiração foi sua vida tumultuada e sofrida sem o reconhecimento da paternidade, pois seu pai, João Maria Espanca, somente a reconheceu,19 anos após sua morte, ao ser inaugurado um busto em homenagem à poeta, na cidade de Évora.
(texto elaborado com base em: https://www.ebiografia.com/florbela_espanca/)
Florbela Espanca, batizada Flor Bela Lobo – com o nome apenas de sua mãe, Antonia da Conceição Lobo, a empregada de João Maria – tentou suicidar-se por duas vezes, tendo conseguido seu intento em 1930, no dia de seu aniversário, a 8 de dezembro, às vésperas da publicação de “Charneca em Flor”, ocorrida em janeiro de 1931, e, considerada, por muitos, sua obra-prima.
(texto elaborado com base em: https://educacao.uol.com.br/biografias/florbela-espanca.htm)
Ao coletar essa citação na obra de Florbela Espanca me perguntei sobre o quanto, realmente, as características que ela aponta – a sede de infinito, a angústia constante mal compreendida, a natureza exaltada, a alma intensa, violenta, atormentada, que não se sente bem onde está e tem saudade de algo que não reconhece – pode impedir alguém de sentir-se uma pessoa. “Estou longe de ser uma pessoa” *… afirma ela.
* Cabe um registro curioso de que em muitos sites que consultei para elaborar este artigo, encontrei a forma de citação (escolhida aqui) com a palavra pessoa. Em vários outros sites, de Portugal e do Brasil, localizei a mesma citação apresentando a palavra pessimista, no lugar de pessoa. Indico, para fins dessa comprovação, dois sites de Portugal pesquisados, cada um citando uma das formas. (A hipótese de erro na tradução da obra de Florbela Espanca é afastada por ambos publicarem em seu idioma pátrio).
http://www.citi.pt/cultura/literatura/poesia/florbela_espanca/index.html
Lembrei-me, então, do livro Tornar-se Pessoa (1961), de autoria de Carl Rogers (1902-1987), psicólogo americano que influenciou psicólogos e pedagogos, nos anos de 70 a 2000, no Brasil.
A «abordagem centrada na pessoa» é a sua teoria de corrente Humanista. Tanto Rogers quanto Abraham Maslow (1908-1970) introduziram vários conceitos na prática de professores, pais e outras pessoas que se dedicam ao desenvolvimento humano.
O conhecimento do mundo da pessoa, que busca entender a experiência do outro, em seu mundo próprio, é o conceito básico da teoria de Carl Rogers.
Atualmente, essa teoria, no Brasil, não está mais sendo aplicada em grande escala, mas ainda muitos pais e professores continuam a usar palavras tais como: autoconhecimento, diálogo, coerência, empatia… porém com o passar do tempo fomos mudando a sociedade, nos moldando através dela, e, esquecendo de como aplicar esses e outros conceitos humanistas na prática.
A ansiedade e o pensamento acelerado (https://aempreendedora.com.br/boa-noite-durma-bem-meu-filho/) ocorrem na sociedade atual, junto ao medo da violência, a desconfiança entre os indivíduos, os preconceitos, e, os julgamentos exaltados.
A nova forma de vida no coletivo abandonou o caráter humanista da educação com ênfase no desenvolvimento e na comunicação entre as pessoas.
O que vem sendo alterado no coletivo e no individual? A família, que é a primeira “escola” no trato com as emoções e sentimentos, mudou nas relações entre seus membros, devido ao excesso de coisas a fazer fora do lar e pelo exagero no uso da realidade virtual.
Os saraus, à noite, com poesia, música, leitura, conversa livre, e, jogos do tipo “devagar se vai ao longe”, deram lugar às portas fechadas dos quartos com os celulares sobre as camas.
Também os recreios escolares orientados por canções e brincadeiras coletivas deram lugar a competições e bullying. A violência chegou à escola e a solidão aos lares.
O que é lento e devagar perdeu seu sentido. É tudo flash e fast. Pouca coisa ainda se faz em cooperação e com solidariedade.
É mais fácil conversar em casa pelo celular, do que olho no olho, de mãos dadas, ou num abraço, caminhando no parque. O toque de pele entre pais e filhos vem diminuindo, junto com os diálogos.
A família prioriza o desenvolvimento cognitivo e o transfere para a escola. As emoções não são atendidas pela família ou pela escola, mas são descarregadas nas redes sociais online com palavras, memes e figurinhas que ilustram o estado emocional da pessoa naquele exato momento que muda, rapidamente, quando começa a curtir outra coisa.
Tanto pais quanto professores temem os jovens em suas reações emocionais. A desconfiança aumenta entre as gerações e também os episódios de violência em casa, na escola, nos bairros.
O tempo em que os jovens respeitavam os pais e professores porque havia confiança dos mais novos em relação aos mais velhos com obediência exigida e acatada, deu lugar à credibilidade entre as pessoas, muito mais pela coerência que demonstram entre pensar e agir, do que pela idade ou hierarquia.
Uma mãe ou pai que diz ao filho que não deve mentir, mas que pede para a criança ou adolescente dizer que não está em casa para um amigo que o chamou por telefone, perde a coerência e sua credibilidade. Muitas situações acabam minando a confiança e o crédito entre os membros da família.
O jovem aprendeu a cultivar sua independência (ou solidão), a qualquer custo. Independência, mas não privacidade, pois usa o mundo virtual como um diário de seus íntimos desejos com relato de suas emoções e com julgamentos intensos, exaltados, atormentados, violentos, como “uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade…sei lá de quê!” (Florbela Espanca)
Raiva, medo, tristeza, ansiedade… são visíveis nos comportamentos e quando a mesma emoção se repete muitas vezes fica sendo uma atitude que só será deixada de lado se a pessoa de qualquer idade assumir seu autoconhecimento e as práticas para mudar seu padrão de reação.
Do contrário, a atitude raivosa, medrosa, triste, ansiosa ou preocupada… poderá ocorrer na vida do indivíduo, indefinidamente. (https://aempreendedora.com.br/harmonizando-pais-e-filhos-frente-a-onda-do-game-baleia-azul/)
É preciso buscar formas para cultivar a paz dentro de nós e no coletivo com base em saberes ancestrais ou em teorias contemporâneas, que sejam coerentes e efetivas para lidar com o mundo acelerado e violento, que vem gerando ansiedade e medo entre as pessoas. (https://aempreendedora.com.br/boa-noite-durma-bem-meu-filho/).
As práticas que me trazem maior confiança, pelo caráter educacional que possuem, são as que consideram o desenvolvimento da pessoa com atenção aos processos de autoconhecimento e comunicação.
Nessa direção, o psicólogo, professor, e, pacifista Marshall Rosenberg (1934 -2015) criou a proposta da “Comunicação Não -Violenta”, na década de 60.
A partir de suas ideias, foram criados sistemas de apoio à vida nas relações intra e interpessoais em mais de 60 países nas áreas de educação, saúde, familiar, etc..
CNV consiste em processo para inspirar ação de empatia e solidariedade através de pessoas que desejam agir a favor da paz. A proposta resgata conceitos da teoria de Carl Rogers e os amplia, aplicando-os ao mundo atual.
“Espero que se torne evidente que esses conhecimentos, aplicados preventivamente, poderão ajudar no desenvolvimento de pessoas maduras, não-defensivas e compreensivas que possam enfrentar de uma maneira construtiva as tensões que se lhes depararem no futuro.
Se eu conseguisse tornar patentes, para um número significativo de pessoas, os recursos por utilizar dos conhecimentos já disponíveis no domínio das relações interpessoais, considerar-me-ia amplamente recompensado.” (Carl Rogers em suas palavras “ao leitor” na obra Tornar-se Pessoa,1961)
Quanto às relações interpessoais, a CNV crê que a crescente violência é um reflexo de uma lógica de ação e relacionamento dissociados de nossos verdadeiros valores, pois as formas de linguagem predominantes em nossas comunicações envolvem interpretações e julgamentos sem considerar as necessidades (valores comuns a todos os humanos).
Nossa comunicação, geralmente, se realiza fora dos sentimentos e muito ligada à cabeça que cria a crença de que nossos julgamentos sobre o comportamento da outra pessoa são exatos e corretos.
Tanto pais/filhos quanto professores/alunos se comunicam desse modo, o que gera resistência e até violência entre as gerações.
Assim, as críticas pessoais, rótulos e julgamentos dos outros, seus atos de violência física, verbal ou social, são revelados como expressões trágicas de necessidades não atendidas.
Essa consciência amplia a responsabilidade entre as pessoas que se comunicam, e, através do diálogo honesto, diminui a chance de agressões e violências pessoais/grupais, preventivamente, se houver uma profunda consciência sobre isso.
(Comunicação não-violenta; técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais, 2006) Rosenberg afirma que 90% de nosso sofrimento acontece por causa de nossas interpretações!.
Por isso, o diálogo, com base na expressão dos sentimentos conectados às necessidades humanas é tão importante na comunicação não violenta, que se efetiva quando existe a responsabilidade e a honestidade entre as pessoas.
E como praticar a comunicação não-violenta na educação? O conceito básico é a empatia, aliado à honestidade pelo autoconhecimento e ao diálogo interno e externo.
O diálogo honesto é aquele em que há integridade no acolhimento, sintonia para apoio e cooperação entre duas pessoas, interesse mútuo pelo desenvolvimento do outro.
Isso permite trazer o foco para as necessidades humanas, pois atrás de cada sentimento há uma necessidade.
Para colocar-se em prática, é essencial aprender a linguagem que permita construir a relação de confiança entre os indivíduos que estão se comunicando.
É a aquisição de uma competência presente na educação que permite cooperar e apoiar um ao outro em seus processos de desenvolvimento. (https://www.scribd.com/document/306204479/Comunicacao-Nao-Violenta-pdf, outubro/2013)
Na prática, o aprendizado envolve alguns passos, que exemplifiquei com parte de um poema de seu criador, coletado no livro Comunicação não-violenta, (2006, p.49)
“Posso lidar com você me dizendo O que eu fiz ou deixei de fazer. E posso lidar com suas interpretações. Mas, por favor, não misture as duas coisas. Se você quer deixar qualquer assunto confuso, Posso lhe dizer como fazer: Misture o que eu faço Com a maneira que você reage a isso. Diga-me que você está decepcionada Com as tarefas inacabadas que você vê, Mas me chamar de "irresponsável" Não é um modo de me motivar”...
A seguir, os procedimentos para experimentar a CNV:
Diálogo interno: a preparação da pessoa que deseja iniciar a comunicação:
- Observe o comportamento da outra pessoa que está afetando seu bem estar (ex: “as tarefas inacabadas”, no poema)
- Perceba como se sente, honestamente, em relação ao que vem observando (ex: “decepcionada”, no poema)
- Localize a necessidade que está por trás do sentimento (ex: responsabilidade)
- Identifique a ação concreta que vai pedir para melhorar a vida de ambos (ex: completar a arrumação…)
Diálogo externo: dizer sinceramente como se sente, mencionando o comportamento observado, sem responsabilizar a outra pessoa pelo que está sentindo e focando na necessidade que gerou o sentimento.
- Completar com seu pedido numa ação clara e afirmativa mostrando o que gostará que seja feito (ex: completar a arrumação das roupas/dos livros/dos brinquedos, etc.)
- Vamos treinar, em casa e na escola, a nova forma de comunicação com os mais jovens. Ao invés de dizer “você está sempre atrasado(a)”, tente dizer: “estou desapontada(o) porque preciso de respeito”.
- Experimente trocar a frase: “você é egoísta” por “estou decepcionado(a) porque preciso de apoio”.
- Altere: “você não sabe se organizar” por “estou frustrado (a) porque preciso de mais ordem”… Respeito, apoio e ordem são as necessidades por trás dos sentimentos.
- Para completar o diálogo, pense no pedido que gostaria de fazer para a pessoa.
Temos, portanto, uma proposta nas mãos, um desafio, um novo aprendizado de relacionamento para todos. Viver em paz é o nosso alvo. Poderemos aprender a competência da comunicação não-violenta na educação para aplicar na família, na escola, na sociedade em geral.
Acredito que a literatura e a poesia, principalmente, possam ajudar nesse processo de comunicação pela expressão livre dos sentimentos e necessidades humanas, com empatia e conexão das palavras com as realidades vividas. Finalizo, com a afirmação de nossa poeta Gloria Kirinus sobre a leitura como caminho para um mundo mais solidário e menos solitário.
Sugestão de leituras com algumas notas que escrevi:
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Tornar-se Pessoa (Carl Rogers,1961) – Nota: livro da teoria humanista centrada na pessoa (Psicologia e Educação)
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Comunicação não-violenta; técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais (Marshall B.Rosenberg,2006) – Nota: livro com a proposta CNV apresentada por seu criador com casos práticos de aplicação
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FULL – Nonviolent Communication Workshop (Marshall Rosenberg,2000) – Nota: Seminário de orientação prática da linguagem na proposta de comunicação não-violenta
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Comunicação não-violenta na prática (Giovana Camargo,2016) – Nota: um exemplo muito interessante da CNV na prática a partir de situação vivida
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Eu (Florbela Espanca) – Música
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Muito além da dor: as várias faces de Florbela Espanca (Andressa Vieira) site: O Chaplin – nota: poema confessional de Florbela Espanca e a comunicação entre sua obra e uma leitora
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Synthomas de Poesia na Infância – programa: Presença e Harmonia (Gloria Kirinus, 2017) – Nota: Gloria Kirinus (entrevista com a escritora/poeta/professora/pesquisadora/cidadã contemporânea): fala sobre a relação entre as provocações da vida vivida, observada e refletida e a sua obra; a visão da criança como “estado poético puro” e a possibilidade da “contaminação feliz” com os adultos para que também descubram seu mundo de poesia latente; a riqueza do acolhimento do “subjetivo” como fonte da solidariedade de sentir o outro e de se conhecer, superando o excesso do uso do “objetivo”; a história do primeiro livro escrito e a confissão de amor por um de seus livros, em especial; a criação da Oficina Lavra-Palavra, no Brasil e América Latina, para adultos; os escritores que a influenciaram e a mensagem final.
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Synthomas de Poesia na Infância (Gloria Kirinus, ed. Paulinas,2011) – Nota: como os pais e professores podem compreender o potencial criativo, intuitivo e intelectual da criança, sem rótulos de transtorno em saúde, ao valorizar o estado de poesia, inerente à infância.
Sem negar estudos médicos e diagnósticos, a argumentação da escritora poeta vai na direção de que se uma criança foge do padrão normal de comportamento esperado pelos adultos, nem sempre se caracterizará como um caso clinico.
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Site dos 30 anos de literatura da poeta Gloria Kirinus
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Sujeitos Leitores (Gloria Kirinus, 2011) – Nota: vivências de criança com a escolha de “seus” poetas; suas trajetórias no Brasil pelo encanto do “fazer arte”; a leitura no caminho do “solitário” ao “solidário”, pelo imaginário.