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Conto: Pai…

Tenho lembranças dentro de mim, de que um dia tive pai.

Sou órfã, largada na rua, sem casa, parentes ou amigos. Sei que mãe não tive, mas pai eu sinto ainda na memória, fresca como se fosse ontem. Mas, isso não é verdade.

Já faz muitos anos que estou na rua.

Sem comida, sem roupa boa, estou vestindo uma camiseta surrada e cheia de furos, uma bermuda de sarja que encontrei na calçada de uma casa porque o vestido era ruim demais para se sentar na rua, e até dormir, e já estava bem precisado de ser trocado mesmo, um par de chinelos já gastos no solado, boné para esconder meus cabelos por cortar, faz um tempo que não encontro aquela mulher que me levava para casa, me dava um banho e me dava roupas novas, usadas, mas boas.

Que será que aconteceu com ela? Porque não a encontro mais? Passo quase todos os dias em frente à sua casa, mas não a vejo mais.

A vizinhança tem medo de mim, quando chego para perguntar sobre ela, elas correm a entrar e fechar a porta, algumas até batem com força para demonstrar o quanto sou malquista por elas.

Nesse momento me sento na calçada e choro. Fico muito triste por não ser bem-vinda nas casas, e aquela que me tratava bem está sumida. Nem sei o que aconteceu com ela.

Ela tinha o mesmo defeito que eu, mancava de uma perna, teve trombose quando mais jovem, ela contava, e depois de sarar ficou sequela, nunca mais podendo andar direito.

Ela também não usava sapato, pois teria que comprar dois pares de números diferentes, um pé não havia desenvolvido bem, e era menor que outro.

Sofria com isso, ia comprar sapato ou tênis e as vendedoras não queriam trocar os pés para diminuir o gasto. Coitada.

Ela comprava chinelos, então eu ganhava chinelos, mas quando eu era pequena não tinha defeito, porém um dia, fui atropelada ao atravessar a rua e tive que parar no hospital. A pessoa me levou e deixou na porta do hospital.

Alguém me achou lá, machucada e me levou para dentro, como eu sempre usava bermuda ou calça, pensaram que eu era menino. Mas ao ser examinada no P.S., descobriram que sou menina, daí a mulher que me levou para dentro disse no hospital que ia cuidar de mim.

Eles não quiseram deixar, pois tinha que me cadastrar no abrigo, depois disso ela podia ir lá e me adotar, mas depois que entrei no abrigo, nunca mais ninguém fui me visitar.

Lá fui maltratada, as crianças grandes batiam e chutavam as pequenas, e a cuidadora não tomava partido de ninguém. Ela dizia que briga de crianças, adultos não metiam colher.

Quando fugi de lá, fiquei com sequela do atropelamento, pois não fiz fisioterapia, aliás, lá isso era coisa de luxo. Lá a gente comia se for obediente, banho era de água fria, comida era o básico, não tinha guloseima para não estragar os dentes.

Aproveitei o portão abrir para entrar o carro da manutenção, e saí sem ser vista, eu brincava perto do portão após o almoço. Era livre por meia hora depois das refeições.

Quando me vi na rua, senti uma liberdade sem fim, saí saltitante, feliz, por não ter mais ninguém me batendo. Eu olhava para trás para ver se alguém vinha em meu encalço, mas não tinha ninguém, nem deram falta de mim.

Só que, ao passar das horas o estômago reclamou, o cansaço gritou, e fiquei perdida. Como fazer para dormir, ou comer? Sentei na calçada num degrauzinho que tinha uma cobertura, assim se chovesse não me molharia, passei a olhar o tempo, tentando pensar como fazer para conseguir comida.

Havia perdido a noção das coisas, onde era a minha casa? Não conseguia lembrar, mas lá no fundo, o meu pensamento remetia a uma casa simples, mas bonita, bem limpinha, e sempre via um rosto.

O rosto era de um homem bondoso, até bonito, uma barba bem-feita, cabelos pelo ombro, estilo roqueiro, não conseguia ver o corpo, pois eu via somente o rosto até o ombro.

Comecei a chama-lo de pai. Isso me preenchia o vazio, não me deixava sentir tão só.

Um pai que nunca reclamou a ausência dela, que não buscou encontrá-la. Comecei a sentir falta, a minha visão passando de sonho a realidade, realidade a sonho, já perdendo noção, a sanidade.

Nessa época eu contava com meus 11 a 12 anos, não podia prever, pois não carregava nenhum documento. Nem meu nome eu sabia, não tinha memória, acho que esqueci quando bati a cabeça no acidente.

Tenho memória do que aconteceu depois do acidente para cá, e forçando trouxe a casinha, um rosto.

Estava tentando me ajeitar para ver se dormia um pouco, pois de olhos fechados, sonhando, não sentiria tanto medo, como estou sentindo agora.

Alguém cutucou meu ombro, dei um grito e abri devagar os olhos, quando vi uma senhorinha com rosto triste, e cheio de sacolas nos braços, tentando me acordar, para saber se estava com fome.

Agradeci ao pai que já aparecia no pensamento, e sentei para ver a pessoa direito. Ela tinha os cabelos grisalhos, em coque frouxo na nuca, estilo vovozinha, blusa de lá por cima de uma camiseta, saia de lá, chinelo, e bolsas, sacolas de compra, me olhava que dava dó.

Levantei e ofereci ajuda para as sacolas e ela aceitou, parecia que estava cansada.

Disse que se eu ajudasse a levar, me daria roupa e comida, então fui até lá. Realmente como pensei, a casinha simples dela tinha muita bugiganga, no quintal e dentro também, mas ela era boazinha, pelo menos me deixou tomar banho, me deu uma troca de roupa e um par de chinelos.

Eu já estava limpa, quando senti um cheiro bom de sopa de galinha com batata. Ela me deu uma tigela e mandou que pegasse na panela o quanto quisesse comer.

Me senti no céu, pois era tão gostoso, não tinha noção de que tinha passado uma semana após sair do abrigo, aff…, nem quero lembrar daquele lugar.

Naquele dia ela deixou que eu dormisse no sofá. Ela tinha gatos pela casa, então eu tive uma rinite danado, mas não reclamei, pois nem sabia que era alérgica a gatos, dormi com um feito travesseiro, azar o meu, a rinite me atacou de jeito.

No dia seguinte, quando a Judith, estava coando o café, me deu um dinheiro para comprar pães fresquinhos para tomar com queijo e salame, e me mostrou na rua onde tinha uma padaria.

Ao retornar a casa, a mesa estava posta, comemos em silêncio, logo arrumamos a cozinha e percebemos que nós duas andávamos mancando de uma perna. Eu da direita e ela da esquerda. Demos uma gargalhada tão alta que escutaria da esquina seguinte.

Então ela trouxe um par de chinelos e me fez experimentar, quando percebemos que meu pé bom era um pouco maior que o quebrado. Mas juntando o número menor dela, dava certinho.

Feliz da vida, ela quase me arrastou para a sapataria de outro lado da rua e pediu dois pares de chinelos, quando a vendedora ia avisando que não iria trocar os pés.

Judith pediu dois pares de numerações diferentes, e trocando os pés me fez experimentar e ela mesma experimentou, dando certinho. Então, feliz, comprou bem uns cinco pares de número 35 e cinco de 36. Pagou dizendo, perfeito.

Ao chegarmos em casa, ela me deu um par e disse, quando gastar esse te dou outro e guardou todos na sapateira atrás da porta.

Queria ficar lá, mas os gatos estavam me botando doente, só chegar na casa e os espirros e coriza era feroz, depois vinham as tosses que incomodavam muito o sono da Judith, então resolvi sair para dormir na calçada, e assim, eu comia e me asseava na casa e dormia na calçada. Ajudava ela na arrumação da casa, nas sacolas de compras.

Um dia, eu saí sozinha para uma caminhada, queria conhecer outras ruas sem ser aquelas que andava com ela, me perdi. Não conseguia lembrar como fazia para voltar. Fiquei dias procurando.

Consegui uma turma de andarilhos, que dormia na praça de jardim próximo da casa de Judith, descobri depois, pois depois que ganhei confiança, eu andava mais, achando a casa dela, era bem próxima da praça.

Soube porque quando entrei na rua dela, ela ia saindo da casa, e desse momento em diante, de vez em quando eu ia lá, cumprimentar e me banhar e comer. Não podia ficar por causa dos gatos.

Quando contei que eu havia encontrado alguns amigos da mesma situação e tenho onde dormir, na praça de jardim, que um dos bancos era meu, só eu dormia nesse banco, ela passou a ir de vez em quando levar sopa e distribuía para todos que dormiam lá.

Fiquei muitos dias sem aparecer lá, nem ela ia na praça mais, porém, eu estava crescendo, não tinha mais vontade de ir e sentir cheiro de gatos, ficava revoltada com isso, sem motivo.

Quando um dia, sentindo falta da conversa dela, e da sopa, fui até lá, mas a casa estava fechada, chamei e ela não apareceu, não encontrei ninguém na casa, tentei perguntar para a vizinha que estava varrendo o quintal e ela largou a vassoura e entrou apressada, fechando a porta.

Hoje, sinto saudades dela, não a vejo mais, então lembrei que nunca mais sonhava com o pai e nem com a casinha simples e bonita.

A memória não voltou, a Judith sumiu, o pai se foi de meus sonhos, estou só, sem ninguém, os andarilhos que eram ciganos, foram embora, durmo aqui e ali, onde der, como o que me dão, não sei ler, nem escrever, banho? Só quando chove, ninguém quer falar comigo.

Abrigo? Não me lembro onde fica. Agora sou grande, posso bater nos pequenos, então podia voltar ao abrigo. Mas onde fica?

Pai, eu preciso de sua proteção, preciso que me ajude, quero a minha memória de volta.

Pai, se um dia eu tive um, por favor, venha me buscar. Estou à sua espera. Estou perdida no espaço.

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Heloísa Kishi

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