Descobrir, escolher e agir são processos humanos que fortalecem a vida e trazem ensinamentos entre as gerações graças à prática da contação de histórias.
Quando uma pessoa realiza essas três ações, de forma consistente, nas diversas fases de sua vida, geralmente os efeitos de suas vivências são mais duradouros e ultrapassam a sua geração.
Refleti sobre isso ao ler a notícia e assistir ao vídeo de um programa em televisão de Curitiba sobre um livro com mais de cem anos recordados por uma única autora que conta sua história.
https://youtu.be/Bcb0gOih7N4 (vídeo excluído da plataforma)
Dona Tita, nascida Odette Cazamajou, em 1915, vive hoje no Brasil, vinda de Buenos Aires com seus pais aos 9 anos de idade. Aqui, preencheu o coração com seu grande amor, Mário, com quem casou aos vinte anos e de quem recebeu o sobrenome Amaral.
Ela continua recriando seu tempo, ao reviver sua história nas páginas do livro Tita; Um Século de Vida, lançado em setembro último.
O registro de momentos vividos, sejam de alegria, tristeza, saudade, solidão ou êxtase, revela, através da escrita, uma mulher que descobre o novo, a qualquer instante, porque escolheu admirar-se com a própria vida e agir de conformidade com aquilo que crê. Verdade, amor e paz emanam da leitura.
Descobrir, escolher e agir, desde bem antes, permitem que ofereça, no presente, um livro de verdades sentidas que veio a surgir graças à insistência de familiares quando fazia uma limpeza em seus pertences.
Um caderno amarelecido, no meio dos guardados, chamou a atenção da bisneta Audrey, que ao mostrá-lo à Vanessa, casada com o neto da escritora, fez com que ela percebesse o valor do que haviam achado, como escreveu na obra que prefaciou:
“não estava a segurar apenas o caderno de anotações de uma senhora, mas sim, uma relíquia, na qual sensivelmente, entre textos, poesias e pensamentos, registrou seus valores, sua fé, sua sabedoria e ensinamentos de uma vida para nossas vidas.”
“Acabo de tomar café, continuo sentada, admirando a beleza e a imensidão do mar… Penso em Mário… Hoje, mais tranquila, pois sei que ele está bem. Meu pensamento vaga… Revivo a noite de 27/10/1935 quando fui pedida em casamento. Como mamãe foi inconveniente! Quantas coisas desagradáveis nos disse. Que vexame!” (AMARAL, O.C.Tita;um século de vida. Curitiba, Ed.do Autor, 2017,p.21)
Nesse exato momento, o leitor sente-se preso na teia do acontecido e espera saber como sucederam-se os próximos acontecimentos. E Tita desabafa: “Pobre de mim! Aquela era a noite do meu noivado.
No dia seguinte, cedo, ele retornaria para Curitiba”. Ela conta que o acompanhou até perto da porta e que ele abaixando a voz, disse: – apesar de tudo, hoje, eu dormirei imensamente feliz! Então, Tita foi direto para seu quarto e se deitou. (op. cit, p. 21)
E então, o leitor pergunta aflito: Odette, Odetita, Tita, o que aconteceu depois? “Eu estava de manhã, na cozinha, preparando o café, quando escutei: – Bom dia, querida! Muito alegre, surpreendida, lá estava ele! Na porta. Muito alegre e feliz apesar de um pouco constrangido”. (op.cit, p.21)
E, assim, o livro vai trazendo “longínquas lembranças, há tanto tempo adormecidas”. E, em 89, num poema, a escritora conta que as recordações a inundaram pois:
“Hoje o mar está agitado e cinzento.
Mesmo assim me fascina!
Me encanta!
Tem o poder de confundir todos meus sentimentos.
Consegue até, reavivar
Minhas longínquas lembranças,
Há tanto tempo adormecidas…
Meus pensamentos se confundem.
Sinto-me perturbada
Ao relembrar tantas emoções já vividas…
A primeira paixão secreta da menina moça…
Os primeiros sonhos…
As primeiras ilusões…
O primeiro beijo!
Nosso mundo de fantasia!
Sentimentos tão puros e passageiros, que guardamos
Apenas como uma doce e suave lembrança…
Sejam indulgentes na crítica!
Lembrem-se:
Todos acabamos
sentimentais
ao envelhecer”. (op. cit, p. 23)
Os sentimentos trocados entre os mais jovens e os mais velhos são os elos de aproximação entre as gerações, pois as histórias provocam emoções semelhantes, independentes das idades, porque todos somos humanos.
O respeito e a admiração surgem, no entanto, somente quando há o reconhecimento do outro, como parte da educação na família e na escola. Valores precisam ser vivenciados para serem aprendidos e assumidos!
O caderno de Tita poderia ter ficado perdido numa gaveta do quarto, mas houve um movimento significativo por parte de sua família, que, além do livro, criou um canal no youtube: Vovótuber para valorização do seu talento de contadora de histórias com toda sua sabedoria pela reflexão vivida e relatada em prosa e poesia, pelo movimento da imagem e pela força da escrita.
“Eu comecei a escrever para preencher as horas de insônia e a solidão que, no momento, era minha vida…” (depoimento emocionado de Tita ao gravar para este artigo)
Todo o idoso anseia pelo acolhimento por parte dos mais jovens, mas nem todos recebem este afeto e a consideração necessária. Muitas vezes aqueles que envelhecem não expressam, verbalmente, o desejo de estar junto com a família e serem escutados.
São tratados como móveis e utensílios, fixados em algum lugar da casa, sem conversas ou diálogos com eles.
Somente a sensibilidade dos que convivem com a pessoa de mais idade é que poderá ajudá-la a comunicar-se de alguma forma. A atenção e o cuidado que possam receber devem ser complementados pela oportunidade de expressar sua história.
Todos têm algo a contar, seja falando, escrevendo, pintando, desenhando, tocando um instrumento, cantando, modelando, ao costurar os retalhos de suas vidas.
Lembro aqui de Sou feita de retalhos, que circula na internet, e, na maioria das vezes, é atribuído à maravilhosa Cora Coralina (1889-1985) que viveu em poesia até seus 95 anos
https://youtu.be/GlKYkm4jbgw
Na verdade, esse poema é de autoria de Cris Pizzimenti, professora, que trabalha com os valores na educação https://www.pensador.com/autor/cris_pizzimenti/ . É defensora da proposta “roda de conversa” no trabalho pedagógico escolar com os valores da Verdade, Amor e Paz. No link a seguir, uma entrevista sobre o livro de sua autoria publicado pela ed.Vozes com o título Trabalhando valores em sala de aula.
E ao ler o livro de Tita, eu o senti como uma roda de conversa porque o aspecto pessoal do diálogo e da expressão livre estão presentes em todos os seus textos de prosa ou poesia. Os recortes expressam retalhos intimistas que foram alinhavados e costurados junto com personagens reais que conviveram em sua vida.
Tita escreve à página 32: “Hoje fui, novamente, buscar água na fonte. Vou sempre por uma rua deserta, tranquila, e no silêncio quase celestial, uma incrível paz me invade.
Para descansar, acomodo minhas garrafas, sento-me no muro, e fico a admirar as casas que estão todas fechadas, e, me pergunto: será que os moradores dessas casas tão lindas, são felizes?
Meu pensamento viaja através do tempo. Revivo, então, as lutas e alegrias passadas… vejo o que fui e o que hoje sou… e assim, na calma que me envolve, analiso o que foi minha vida, e sinto neste momento, com imensa alegria e muita emoção, que tudo o que vivi, valeu a pena ter vivido!
Recordar… Sonhar… Sei que sempre continuarei a sonhar…, apenas os sonhos são outros, quando a nossa mocidade, já ficou tão distante. “ (op. cit, p. 32)
Aos 74 anos, em outubro de 1989, a autora escreveu esse texto que revela a importância de sonharmos, em qualquer idade. Ela revela que, além de recordar, sempre continuará a sonhar, não os mesmos sonhos, mas muitos outros.
Balbucia, no final do depoimento gravado para este artigo “Nunca esperei que o que eu escrevia para minha distração viesse a ter a divulgação…” Interrompe, emocionada, e decide, então, enviar a frase ditada para Audrey, coisa que costuma fazer, hoje, por problemas visuais, quando volta a contar sua história e seus sonhos: “fiquei muito surpreendida porque nunca esperei que o que eu escrevia para me distrair chegasse a essa divulgação”.
Acredito que seja a capacidade de sonhar que anima pessoas como Tita e assegura sua atitude de esperança nas diversas etapas do viver.
Isso pode ser chamado de saber-viver ou até de sabedoria…