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Segredo não contado – Conto de Heloisa Kishi

Segredo não contado – Conto de Heloisa Kishi

Um garoto e reflexão de seus atos

Segredo não contado – Estive na porta da igreja, era o meu dia de casamento. Os convidados estavam lá, os pais e padrinhos. A noiva, linda com um vestido deslumbrante. Ansiosa pelo dia do sim.

Cheguei de carro, dispensei o motorista e eu dirigi até a esquina, parei, respirei fundo.

Vi a cena, todos bem arrumados, as mulheres de penteado novo, maquiagem, sapatos lindos.

Indeciso, não desço. Visualizo a cena, eu entrando e caminhando na nave da igreja, sério, ereto, passo entre passo, conforme ensaio dos dias anteriores, os padrinhos, pais e parentes já em posto.

Ia até o altar e me virar para admirar a entrada da noiva, aquela que ia ser minha esposa.

Penso, eu a conheço? Casar-me com ela? E depois?

Não consegui sentir nada. Deu um apagão na mente, a cabeça girava a mil.

Liguei o carro e arranquei duma vez no asfalto. Se alguém viu, não sei.

Se percebeu que se tratava do noivo fujão, também não sei.

Simplesmente tinha pressa, precisava sair dali, para poder respirar.

Nesse momento percebi que estava prendendo o ar, parara de respirar, fazia alguns minutos, por isso a cabeça parecia estourar.

Comecei a respirar devagar, depois ofegante, havia feito algo ruim, algo feio.

Abandonara a noiva no altar. No dia do sim, no dia mais feliz dela.

O que aconteceu comigo? Não sei…

Só a minha mente registrava como num filme que rodava vertiginosamente, tudo que já havia vivido, todas que havia conhecido. A mente trazia cada uma, rosto, traços, cabelos, roupas, forma física, nome… Não esqueci de nenhuma, desde a primeira até esta que havia abandonado, fazia alguns minutos. Tive 26.

Um número fácil de memorizar, porque coincide com a minha idade atual.

Lembro-me de todas elas.

Parei numa calçada, admirando a paisagem. Estava exatamente no local que mais gosto, onde vinha quando tinha alguma caraminhola para desvendar ou resolver.

Era orla da praia, beira da calçada, onde a areia à frente era branca e fina, uma brisa fresca me traz o cheiro do mar.

O mar estava agitado àquela hora do dia, a água vinha com força e batia na parede de pedra, trazendo no ar, espuma branca com cheiro de maresia. Lá longe, avisto gaivotas a rodear um barco. Aqui próximo à areia branca, a água já vinha mais branda. Cheia de espuma branca, fiquei observando esse vai e vem da água, azul mais voltada para verde a essa hora. O sol já se despedia, emitindo um raio dourado que refletia na água bravia.

Abri a porta do carro e desci para a calçada, tirei os sapatos pretos e reluzentes, novo, era para o casamento, arregacei a calça de viscose preto, novo, também do casamento, tudo me lembrava o quanto eu estava sendo insensato com a moça que seria minha esposa dali a algumas horas.

A essa hora, a festividade estaria a mil, com pedaços de gravata a serem leiloados, para angariar fundos para a lua de mel, é tradição no dia do casamento. Muita gente falando, alegres, comendo e bebendo, contando façanhas divertidas, com histórias diversas de suas vidas e de sua prole, trouxe à memória a cara de meus pais e dos pais dela, e dela, como estariam? Esbravejando? Tristes, sem entender?

Tive um ato covarde ao me retirar daquele jeito do dia da cerimônia, porque não desfiz antes? Porque deixei acontecer e depois desisti? Por mais que questionasse, não conseguia uma resposta.

Fui andando, pés descalços na areia, experimentando a maciez da areia na sola de meus pés. Sem nada na mente, olhar fixo no horizonte, onde o sol se põe, devagar, manso, morno.

Tirei a gravata pelo caminho, abri a camisa e coloquei na areia, fui tirando as peças de roupas, por fim, a calça, ficando somente de boxer. Corri para a água gelada, entrei e nadei até os braços doerem. Parei e vi até onde havia nadado, conseguindo avistar a praia bem longe, abandonada àquela época, fora da temporada.

Boiei, e comecei a rolar o filme de minha vida, desde o início, quando estava na escolinha, o famoso Pré II.

Foi quando tive a primeira namorada. Era secreto eu sei, mas não deixou de ser a minha namorada secreta, aquela que me alimentava a emoção, o calor, o rubor no rostinho de criança.

Estava eu sentado na cadeira, juntamente com mais 19 crianças, na salinha de atividades, a professora estava de licença e a auxiliar havia dado algumas folhas e lápis para entreter a galera enquanto a substituta era entrevistada pela diretoria.

Quando a porta se abriu e avistei uns cabelos esvoaçar antes mesmo de ver o rosto. O meu coração parou, aliás, tudo à volta parou quando ela entrou, rosto angelical, pequeno e redondo, nariz levemente arrebitado, cabelos cortados até a orelha, soltos, ela olhou para mim, eu juro, ao conferir em volta, tudo estava parado, o tempo havia parado, só eu e ela movíamos.

Olhos, de um azul celeste, transparente, um tanto de malícia foi avistado por mim, lá dentro, na pupila.

Foi um átimo de tempo, depois tudo voltou ao normal, crianças em algazarra, querendo mostrar seus trabalhos à nova professora.

Eu, quieto, admirando aquela beleza puríssima. Decidi que aquela seria a sua namorada, que iria se apaixonar perdidamente por ela, que eu seria tudo para ela e ela para mim.

A partir de então, tudo que ela fazia me aprazia, desde passar as folhas para o desenho, separar os lápis para cada criança, as tarefas dadas, eu reparava nas mãos dela, delicadas no trato com os objetos, o rosto e olhar carinhoso com as crianças, como não se apaixonar? Me diga?

Essa paixão durou até o final do ano, quando a escolinha entrou em férias, final de ano, passeio, viagem, praia, minha mãe tinha família com casas em praias como Santiago, Praia Grande, Maresia, podia escolher e ir.

Eu era muito branco, quase transparente, mas esses dias de praia me deu uma corzinha até elogiável, como fui bem cuidado pela mamãe, minha pele não descascou como lagartixa, fiquei entre branco e bege claro, com cabelos castanhos claros, olhos castanho-esverdeados, fiquei um gato.

Ao retornar à escola, para o Pré III, as professoras eram outras, aquela minha paixão havia escolhido outra escola e se transferiu, nunca mais a vi.

Esse ano se passou, aprendi a ler e escrever, de início o meu nome, depois o bê-á-bá, lentamente, mas consegui memorizar tudo, até passar para o primeiro ano, sabendo ler e escrever, o que foi muito satisfatório, pois, como a vovó dizia, saiu na frente.

Vou contar um pouco da vovó, ela não era como as pessoas falavam, que as vovós estragavam os netos, ela não me estragou, acho que essa frase veio de mães que tinham ciúmes dos cuidados que as avós tinham pelos seus filhos, elas tinham que deixar com as vovós para irem trabalhar, mas não queriam perder o domínio, a atenção e amor total dos filhos, então inventavam essa, para dizer ao povo que o ensinamento delas eram melhores, e para ganhar maior repercussão desse conceito, conseguia o apoio dos maridos, que, para não brigar concordavam com elas, daí essa frase se tornou universal, todos repetindo e tentando acreditar ser verdadeiro.

A vovó mimava sim, cuidava com carinho, dava tudo que eu pedia sim, mas dava o essencial, roupas, calçados, brinquedos, chicletes, doces, enfim, tudo que ela me dava, não fazia mal, mas ela também ensinava muito, conversando, contando como era com o meu pai e meu tio, quando criança, ia desvendando o que devia e o que era para evitar, explicando o que fazia bem e o que não fazia. Assim, fui criando em mim, a essência do que era preciso saber, para me defender no futuro, quando já fosse grandinho e precisasse enfrentar o mundo, ela dizia sempre que aprender colocava a gente na frente, como numa corrida de carro, quem mostrasse melhor destreza ficava na poli, a chance de chegar primeiro na linha de chegada era bem maior.

Eu nunca questionei, mas quando perguntava o famoso “por que?” Ela sorria e contava uma história para eu entender melhor a explicação.

Raras as vezes em que ela ralhava comigo, quando isso acontecia, era porque eu havia aprontado feio, como na minha criancice, a teimosia, porque argumentos eu tinha e muito.

Ela sempre dizia que minha cabeça era de gente grande, que tinha muitos pensamentos feitos que ninguém acreditava que saiam de dentro da minha cabeça.

Não vou dizer que sou especial, mas comecei a trocar algumas palavras antes dos 12 meses de idade, mudei os passos e andei pela primeira vez com 01 ano e dois meses, falei fluentemente com 01 ano e meio, entendia o que falava e trocava ideias, o que era uma benção para a mamãe, que ficava sabendo tudo quando precisou me colocar na creche.

Nos finais de semana, a vovó cuidava de mim, porque a creche era de segunda a sexta. Então começaram aquela frase, não estrague o meu bebê.

Mas, no final, mamãe e papai se sentiam seguros quando eu ficava na vovó.

Lá eles sabiam que eu não ia ser maltratado, que eu seria bem alimentado, eu iria brincar na medida certa e dormir quando tivesse vontade.

A vovó daria um banho para relaxar e me deixar limpinho quando eles chegassem.

Assim, eu cresci, entrei na escola de verdade, como dizem as pessoas, ensino fundamental, já sabendo ler e escrever foi um marco na minha história.

As outras crianças me olhavam admiradas. A professora ficava satisfeita. Eu até ajudava as outras crianças a decifrar algumas letras que elas achavam difíceis.

Vejo atrás, meu passado foi razoavelmente bom, não tinha muita grana mas dava para o gasto.

Logo comecei a trabalhar, queria custear meu próprio estudo. Escolhi uma área que ninguém aprovava de cara, mas era o que eu queria fazer, então eu precisava dar duro no trabalho para ter como pagar a universidade.

Quando me formasse, eu ficaria orgulhoso de mim mesmo, espero que meus pais também.

Estava estudando para ser astronauta, o ensino era puxado, tinha que pesquisar muito, memorizar muitas formulas, muitos astros, ficava horas admirando nos binóculos do INPE, isso me deixava orgulhoso só de poder entender um pouco.

Logo eu estaria fazendo teste para ingressar na NASA.

Então aconteceu o inusitado, conheci uma garota que me tirou o fôlego.

Não conseguia parar de pensar nela, às vezes, tirando o meu foco.

Todos aprovaram o nosso namoro, afinal ela era linda, de parar o trânsito, como falava o vovô.

Meus pais aceitaram-na de cara, fazendo-a parte da família.

Como eu estudava muito, ela ficava com meus pais, viajando, passeando, enfim, em todos os lugares eles a levavam.

Ela era estudante de belas artes, queria ser modelo profissional, porte ela tinha, beleza e corpo também, mas eu achava um tanto fútil.

Não reclamava porque eu também escolhi o que não era da aprovação de todos. Ninguém queria que eu fosse para o espaço.

Eu também achava que minha garota não devia ser modelo, afinal era uma profissão de vida curta, não podia comer quase nada, tudo era balanceado.

Pensando bem, se casasse ela não ia querer ter filho de imediato, para não estragar a beleza corporal. Ia ser maçante ter que ficar regulando tudo.

Acho que em parte, foi isso que me fez dar o passo para trás.

Pensando que foi melhor assim.

Quando me dei conta, o céu estava escurecendo e eu ficando enrugado de tanta permanência na água. Nadei de volta para a praia, tentando encontrar as roupas no escuro, para retornar ao meu apartamento.

Pensaria nas consequências de meus atos só mais tarde, quando tiver tomado aquele banho, colocado uma roupa leve, apreciando a vista noturna sentado na minha varanda, com uma Budweiser Long Neck na mão. Gelada, deliciosa, já penso nela descendo pela garganta, estou salivando.

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