Uma análise psicocriminológica sobre o uso da vitimização como estratégia de poder
Vitimismo como mecanismo narcisista de manipulação revela-se um recurso de controle social capaz de inverter papéis e distorcer percepções para manter domínio sobre os outros.
O presente artigo propõe uma análise psicocriminológica do vitimismo enquanto expressão comportamental e cognitiva associada à personalidade narcisista.
Partindo de referenciais da psicologia forense, da criminologia e da psicodinâmica, discute-se como a vitimização deliberada constitui instrumento de manipulação social, inversão de papéis e preservação de controle sobre o outro.
A partir de observações clínicas e comportamentais, identificam-se padrões recorrentes em sujeitos que alternam entre o papel de algoz e de vítima, com finalidade de manter vantagem simbólica e emocional.
A pesquisa sugere que o vitimismo, longe de ser simples resposta ao sofrimento, integra o repertório adaptativo de estruturas narcisistas, revelando-se ferramenta essencial para sustentar a autoimagem e perpetuar relações de dominação psicológica.
O fenômeno do vitimismo ocupa, nas últimas décadas, posição de destaque em debates psicossociais e jurídicos.
Ainda que frequentemente confundido com sofrimento legítimo, o vitimismo, enquanto construção comportamental intencional, ultrapassa o campo da emoção e adentra o território da manipulação.
Em sua forma crônica, revela-se um modo de agir voltado à obtenção de benefícios afetivos, sociais ou materiais, sustentando-se em narrativas de injustiça, abandono ou exclusão.
Na perspectiva da psicologia forense, compreender o vitimismo é fundamental para distinguir a vítima autêntica da vítima instrumental. Esta última caracteriza-se pela simulação ou exagero do sofrimento como forma de induzir respostas empáticas.
O presente estudo parte da hipótese de que o vitimismo, em suas formas reiteradas, não constitui mero traço comportamental, mas mecanismo integrante da estrutura narcisista da personalidade.
Nessa configuração, o sujeito vitimista-narcisista constrói um roteiro psicológico no qual a autocomiseração se torna meio de preservação do ego e de exercício de poder simbólico.
Narcisismo e sua função de autopreservação
O narcisismo, originalmente descrito por Freud em 1914, representa um estágio necessário do desenvolvimento psíquico, no qual o indivíduo investe sua energia libidinal no próprio eu, formando a base da autoestima e da identidade.
Contudo, quando esse investimento se torna rígido, desproporcional ou desvinculado da realidade, transforma-se em uma estrutura de autopreservação egóica que se sobrepõe à empatia e à alteridade.
Kernberg (1975) propôs que o narcisismo patológico emerge da integração defeituosa entre representações do self e do objeto, levando o indivíduo a oscilar entre grandiosidade e depreciação.
Nesse modelo, o sujeito busca incessantemente suprir lacunas internas de valorização por meio da admiração e validação externas.
Quando essa validação é negada ou ameaçada, o sistema defensivo do ego ativa mecanismos sofisticados, entre eles a vitimização, como forma de restaurar o equilíbrio narcísico.
A literatura clínica descreve o narcisista como alguém que se percebe simultaneamente superior e vulnerável, uma dualidade que explica por que, ao ser confrontado, tende a reagir com ressentimento e teatralização da dor.
Kohut (1977) interpreta essa reação como expressão de um “self fragmentado”, incapaz de sustentar a crítica sem recorrer à idealização ou autocomiseração.
Essa dinâmica pode ser observada em comportamentos cotidianos: ao ser elogiado, projeta uma imagem de perfeição; ao ser criticado, transforma-se em vítima de perseguição.
Tal alternância não é mera manipulação consciente, mas uma necessidade psíquica de defesa contra a sensação insuportável de humilhação. Nesse contexto, o vitimismo protege o ego de colapso identitário.
Millon T. (1996) reforça que o narcisista busca coerência entre o ideal de grandiosidade e a realidade frustrante do cotidiano.
Como o ambiente não valida sua autoimagem, ele desenvolve defesas que reinterpretam experiências negativas, nunca se reconhecendo como causador do próprio sofrimento.
Críticas tornam-se ataques; consequências, injustiças; e limites, humilhações. Esse rearranjo perceptivo cria distorção moral: o sujeito acredita genuinamente ser vítima de um mundo que não o reconhece como especial.
A autocomiseração se consolida como modo habitual de interação, tornando o vitimismo extensão natural do narcisismo.
Pesquisas indicam alterações cerebrais em regiões relacionadas à empatia e autorreflexão, como córtex pré-frontal ventromedial e ínsula anterior (Schulze et al., 2013).
No campo forense, compreender o narcisismo como sistema de autopreservação é fundamental.
O indivíduo racionaliza comportamentos moralmente questionáveis, justificando-os como respostas a supostas injustiças.
Em depoimentos, perícias e processos de mediação, esse perfil apresenta linguagem emocionalmente convincente, capaz de gerar empatia inicial, mas revela inconsistências e deslocamentos de responsabilidade.
Portanto, o narcisismo patológico é uma engenharia psíquica complexa, protegendo o eu do colapso moral e emocional.
Qualquer frustração pode ser reinterpretada como agressão, qualquer limite, como ofensa. Nesse cenário, o papel de vítima torna-se refúgio seguro.
Vitimismo: da emoção ao instrumento de poder
O vitimismo, enquanto comportamento psicológico recorrente, vai além da simples experiência de sofrimento.
Diferencia-se da vítima autêntica por seu caráter instrumental e estratégico, servindo como mecanismo de manipulação e preservação do controle social e emocional.
Em contextos de interação interpessoal ou institucional, o vitimista crônico constrói narrativas de injustiça, abuso ou abandono, explorando a empatia alheia como recurso para obter benefícios afetivos, simbólicos ou materiais.
Simon (2010) descreve o vitimista como um “predador emocional disfarçado de indefeso”, capaz de mobilizar compaixão e culpa em terceiros, invertendo responsabilidades e mascarando intenções agressivas.
Essa estratégia permite deslocar a percepção de culpa, posicionando-se como injustiçado, mesmo sendo o agente do conflito.
Tal comportamento evidencia agressividade passiva, em que o sofrimento simulado ou exagerado se torna instrumento de dominação social e emocional.
Do ponto de vista psicodinâmico, o vitimismo é extensão funcional do narcisismo patológico, consolidando-se como defesa contra inadequação, vergonha ou rejeição.
Quando confrontado ou criticado, o indivíduo recruta terceiros para validar sua posição de vítima, ampliando o alcance de sua influência emocional.
Nesse sentido, o vitimismo deixa de ser mera expressão emocional e torna-se estratégia adaptativa.
Em análises forenses, o vitimismo crônico apresenta desafios. A habilidade de construir narrativa de sofrimento pode influenciar jurados, advogados, peritos e operadores do Direito.
A empatia inicial gerada pelo discurso vitimista frequentemente oculta padrões de manipulação, coerção e distorção da realidade.
O vitimismo funciona como lente pela qual o narcisista reinterpreta eventos e reorganiza o ambiente social.
A alternância entre papéis de vítima e algoz, observada em estudos de triângulo dramático (Karpman, 1968), revela que o comportamento vitimista não é passivo, mas funcional.
Investigações indicam que indivíduos com traços vitimistas persistentes exibem locus de controle externo elevado, baixa empatia e tendência à manipulação (Tangney et al., 2007).
Esses traços corroboram a concepção do vitimismo como mecanismo instrumental de manutenção do poder psicológico.
O vitimismo transcende o campo da emoção: é ferramenta de controle social, estratégia de sobrevivência psíquica e recurso adaptativo do narcisismo.
Sua compreensão é crucial para práticas clínicas e periciais, permitindo identificar manipulação e distinguir sofrimento legítimo de vitimização funcional.
Indivíduos com traços narcisistas patológicos incorporam o vitimismo como estrutura de autopreservação.
Todo narcisista utiliza a vitimização para sustentar equilíbrio identitário, protegendo-se de sentimentos de inadequação, culpa ou fracasso.
A resistência à mudança comportamental está ligada à negação da responsabilidade pessoal. O vitimista-narcisista desloca a responsabilidade de suas escolhas para o ambiente ou outros indivíduos.
Essa postura configura padrão de autojustificação e deslocamento de culpa: o indivíduo não integra causalidade de suas ações à própria narrativa de identidade, permanecendo preso ao papel de vítima.
Portanto, o vitimismo-narcisista é mecanismo adaptativo de estabilidade psíquica, em que a manutenção do papel de vítima garante proteção emocional, controle relacional e preservação da coerência interna, mesmo que implique inércia comportamental e desresponsabilização contínua.
A intersecção entre vitimismo e narcisismo possui relevância direta em avaliação forense, especialmente em disputas conjugais, crimes relacionais e conflitos institucionais.
O perito deve considerar que a autopercepção de “vítima” não exclui condutas abusivas, e que fragilidade aparente pode esconder motivações de controle e dominação.
Nos procedimentos de investigação, a postura vitimista tende a gerar viés empático, dificultando objetividade do julgamento.
A consciência dessa dinâmica é essencial para que operadores do Direito, psicólogos forenses e criminólogos possam distinguir sofrimento autêntico de manipulação estratégica.
Além disso, o reconhecimento do vitimismo como mecanismo narcisista amplia a criminologia clínica, permitindo compreender distorções morais que sustentam o comportamento abusivo e formas de autopreservação discursiva.
A constância dessa postura evidencia que o vitimista-narcisista não integra responsabilidade pessoal em sua narrativa, preservando controle sobre o ambiente e interlocutores, o que representa desafio central em avaliações periciais e psicológicas.
FAQ – Perguntas e Respostas Frequentes
- O que é vitimismo como mecanismo narcisista?
É o uso deliberado da vitimização como uma estratégia de manipulação e controle, onde o indivíduo narcisista inverte papéis para manter o domínio sobre os outros, distorcendo percepções e preservando seu poder. - Qual a diferença entre uma vítima autêntica e uma vítima instrumental?
A vítima autêntica sofre um dano ou dor legítima. A vítima instrumental, por outro lado, simula ou exagera seu sofrimento de forma intencional para induzir respostas empáticas e obter vantagens pessoais, sociais ou materiais. - Como o narcisismo se relaciona com a vitimização?
O narcisismo patológico, caracterizado por uma autoestima frágil e uma necessidade constante de validação, utiliza a vitimização como um mecanismo de defesa. Quando confrontado, o narcisista adota o papel de vítima para proteger seu ego, restaurar seu senso de grandiosidade e evitar a responsabilidade. - Por que um narcisista alterna entre os papéis de algoz e vítima?
Essa alternância é uma estratégia para manter o controle psicológico. Como algoz, ele exerce poder diretamente. Como vítima, ele manipula as emoções dos outros, gera culpa e se isenta de responsabilidade, garantindo que sua autoimagem idealizada permaneça intacta. - O que é “agressividade passiva” no contexto do vitimismo?
É uma forma de agressão disfarçada onde o sofrimento (real ou simulado) é usado como uma arma. Ao se colocar como vítima, o indivíduo manipula os outros através da culpa e da compaixão, exercendo controle e dominância de maneira indireta. - Qual a função da autocomiseração para o narcisista?
A autocomiseração serve como um mecanismo para preservar o ego e exercer poder simbólico. Ela permite que o narcisista reinterprete críticas como ataques e consequências de seus atos como injustiças, mantendo sua crença de que é especial e incompreendido. - O vitimista-narcisista tem consciência de sua manipulação?
O texto sugere que essa dinâmica não é apenas uma manipulação consciente, mas uma necessidade psíquica. O indivíduo pode genuinamente acreditar que é uma vítima, pois esse rearranjo perceptivo o protege de sentimentos insuportáveis de humilhação e colapso identitário. - Como o vitimismo narcisista impacta o campo forense e jurídico?
Ele representa um grande desafio, pois a narrativa convincente de sofrimento pode criar um viés empático em peritos, advogados e jurados, dificultando a distinção entre a vítima real e o manipulador. Isso pode distorcer a objetividade em disputas conjugais, crimes relacionais e outras avaliações legais. - Por que é tão difícil para um vitimista-narcisista mudar seu comportamento?
A mudança é difícil porque exigiria que o indivíduo assumisse a responsabilidade por suas ações, o que ameaçaria sua estrutura de autopreservação. A negação e o deslocamento da culpa são fundamentais para manter seu equilíbrio psíquico e o papel de vítima. - O que o “triângulo dramático” de Karpman revela sobre o vitimismo?
Ele revela que o comportamento vitimista não é passivo, mas funcional e ativo. O indivíduo pode alternar entre os papéis de Vítima, Perseguidor e Salvador para manipular dinâmicas relacionais e manter o controle, mostrando que o papel de vítima é uma escolha estratégica.
Escritora científica pelo ORCID (Open Researcher and Contributor ID)
Identificação Internacional, 0009-0001-2462-8682
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